PURÊ DO GATO
PURÊ DO GATO
Purê fugido. Onde está o purê? Gato comeu. (Erick Bernardes, Purê Felino) |
Muitas vezes nos perguntamos por que algumas lendas existem e sobrevivem há séculos. Uns duvidam até certo ponto, outros afirmam categoricamente, que a língua do povo ecoa profecias divinas. Não sei ao certo, confesso que tenho cá certas manias também. Uma dessas minhas cismas é a de acreditar que os gatos possuem as sete vidas típicas da crendice popular. Quem não põe fé em alguma superstição ou outra, por acaso? Qual cidadão nunca fez sua prece rápida por causa de alguma premonição estranha? Pois é, desnecessário emitir julgamento. Fica a sensação estranha no ar. Principalmente porque esses animais costumam nos encarar de frente; olhos nos olhos; coisa de arrepiar.
Certa vez, em meio a rua onde moro, deparei com um gato siamês extremamente adoentado. Sim, avistei um bichano de raça, usando coleira e tudo, porém abandonado, com certeza estava morrendo. Olhando bem, notei que uma das patas trazeiras encontrava-se em estado avançado de decomposição. Verdade. Um fedor danado só de passar perto. Eu via até parte do osso do membro infectado por larvas de moscas que começavam a roer o quadril. Ferimento nojento, talvez fosse resultado de alguma mordida de cachorro bravo. Absurdo! Cadê o dono do animal nessas horas que não faz curativos? Coitado do felino. Se os gatos têm mesmo as sete vidas tantas vezes apregoada, certamente uma dessas vidas já estaria se esvaindo. Duvidava se bicho sobreviveria ao apodrecimento do corpo daquele jeito. Sentia o estômago embrulhar, verdade. Durante três dias eu vira o gato bem no mesmo lugar, fedendo, decompondo-se aos poucos naquele calor intenso. Revoavam-lhe as moscas verdes brilhosas, enquanto ele encontrava-se deitado na rua, junto ao poste que servia de apoio à placa do lava-jato que havia lá no bairro.
Depois disso o bichano desapareceu, evaporara-se das redondezas – decerto morreu, senão continuaria exalando mal cheiro por lá. Impossível resistir à carcomida das larvas de insetos no corpo magro. Bem, passados sete dias exatos (juro a você leitor, não é conta de mentiroso), o semblante com o olhar vitrificado do gato não se apagava da lembrança. Ahh! Aquele mirar de varar a alma! Sensação de agouro, sete dias, melhor seria esquecer o azul translúcido das pupilas felinas. Mas não, infelizmente não havia como apagar da mente. Ao chegar do trabalho, já pelas onze da noite, qual não foi a minha surpresa! Sim, pasmem, o gato bem ali a me encarar, me olhando fixamente. E pior, o diabo do bicho estava na cozinha, deitado na enorme panela de purê de batata que a minha esposa deixara com carinho antes de viajar. Imundice. Ainda bem que ela viajara logo, com certeza passaria mal. Havia secreção de membros podres manchando o chão. Que porcaria! Vontade de vomitar com aquele cheiro grosso de carniça. Cruzes! Todo lambuzado de purê, certamente comeu tudo, nem enxerguei direito. O cheiro do leite ou da manteiga usado no amolecimento da batata deve tê-lo atraído. Mas como? Ele devia estar morto. O fogão era só manchas escuras de sangue pisado. Sujeira negra. Do outro lado grãos semelhantes a arroz mexiam-se aos montes sobre as bordas da panela. Mas não, em hipótese alguma eram de comida aqueles pontos brancos a retorcerem tanto, coisa mais asquerosa: eram larvas de insetos bailando saciadas. Ojeriza. A saliva engrossou na minha boca, senti odor de morte arder o nó do nariz — e o gato diabólico me encarou de frente. Eu fiquei petrificado, se não fosse meu instinto de defesa, bem provável que teria desmaiado ali ao pé da pia. Os olhos do animal em vias de decomposição não apresentavam mais aqueles cristalino. Não aparentava estar vivo aquele troço ruim. Mostrava-se calmo ao me encarar com os bugalhos baços. Do purê só restaram as raspas na panela repletas de pelos cinzentos grudados. Tonteei de entorpecimento. Entretanto, três segundos foram suficiente para eu pegar o soquete de aço e sentar no demônio meia dúzia de pancadas fortes. Resultado? Quer saber o que aconteceu? O gato fugiu. Sim. Pois é, mesmo decompondo-se o felino conseguiu correr. Não era de outro mundo o bichano, certamente restava alguma vida das sete que teve. O inferno foi ter que lavar casa e fogão com água sanitária depois de jogar a panela fora. E o purê? Nunca mais caiu-me bem no estômago esse tipo de alimento mole.
Como sempre escrevendo excelentes crônicas!!!
Obrigado, meu caro amigo e escritor Renato. Valoroso comentário.