Cristina Vergnano

A maldição do ciclope

No final de 2023, foi noticiado que um modelo de inteligência artificial (IA), parte de projeto de pesquisa internacional incluindo duas universidades europeias e uma norte-americana, seria capaz de estimar a data da morte de uma pessoa. A temática das IA tem pipocado nas redes sociais e na mídia. Achei, portanto, que não estaria mal resgatar a notícia, apesar de “requentada”.

Sua leitura me trouxe à memória, de imediato, um personagem do filme Krull, da década de 1980, misto de ficção científica, fantasia, ação e aventura. Pode parecer curioso, mas ele não era nenhum androide, robô, ou ser sintético senciente. Ao contrário, se tratava de um ciclope. E em que isso pode ter relação com a tal notícia?

Bem, o personagem, a despeito de secundário, me marcou por se inserir num contexto que considero trágico. Ele fazia parte de uma raça, cujos ancestrais pediram aos alienígenas invasores do planeta Krull a capacidade de ver o futuro. Foram, porém, enganados e o único poder obtido foi o de prever o momento exato da própria morte. Fiz uma busca em conteúdos mitológicos e nada nas minhas pesquisas comprovou esse atributo nos ciclopes. De qualquer modo, liberdade criativa ou não, a trama soube explorá-lo, tornando-o memorável. Ademais, o tópico me parece bastante afim à qualidade que os cientistas destacam em sua criação.

Todos temos apenas uma certeza nesta vida: morreremos um dia. Isso, em si, já pode trazer desconforto para a maioria. Não será por casualidade que tantos perseguem a juventude, que haja inúmeros estudos relacionados a prolongamento da existência, ou diversas obras de ficção apresentando imortais. O desejo da vida eterna é, no entanto, um assunto controverso.

No seu livro O Silmarilion, Tolkien pontuou que os seres humanos tinham recebido a mortalidade, diferentemente dos elfos imortais, como um dom. Ao morrerem, poderiam estar juntos a Iru Ilúvatar, o criador onipotente de Arda (a Terra). Em Highlander, filme também da década de 1980, a imortalidade ganha peso de maldição, quando os agraciados com essa capacidade veem, por eras a fio, seus entes queridos desaparecerem, deixando-os sós. É frequente, em obras ficcionais, a presença de personagens entediados, desejando a morte, ou buscando sem cessar emoções novas com vistas a mitigar a monotonia de viver indefinidamente. Um exemplo são certos ricos, na produção de ficção científica do século XXI In Time (“O preço do amanhã”), arriscando-se e expondo-se em territórios pobres para doar seu tempo (ou permitir seu roubo), como uma forma de suicídio.

Parte do engenho e criatividade humanos podem ser atribuídos, talvez, à consciência de nosso fim e ao desejo de deixar uma marca para a posteridade. Nesse sentido, chama a atenção outro personagem, Orochimaru, um dos três ninjas lendários dos mangá e do anime Naruto.  Sua ambição era viver para sempre, a fim de dominar todos os jutsus (técnicas ninja) e se tornar um ser supremo.

Dada essa angústia existencial associada à nossa terminalidade e suas implicações, me pergunto, então, quais as vantagens envolvidas no conhecimento prévio do momento de nossa morte. Seríamos mais produtivos, mais focados? Pensaríamos em tirar maior proveito em vista do bem comum? Ou, ao contrário, surtaríamos e começaríamos a experimentar loucamente tudo que pudéssemos, passando sobre os demais como rolos compressores, tentando garantir cada segundo de plenitude? Difícil sabê-lo. Vemos pessoas em situações de doenças terminais, com suposto prazo limite em seus dias, assumirem ambos os caminhos. Nem sei se, olhando para nós mesmos, cada um conseguiria afiançar que comportamento teria diante desse conhecimento definitivo.

Claro está que o estudo científico implica questões bem mais sérias que esta. O porquê de tamanho interesse na informação é, talvez, uma incógnita. Para que seria usada? Haveria maior segregação, apoiada na durabilidade e utilidade que certas pessoas poderiam ter em comparação com outras? Isso parece ser um parâmetro já utilizado na atualidade em seguros de vida e empréstimos. No âmbito da ficção, seria algo como a seleção de indivíduos com acesso a privilégios devido às suas qualidades genéticas, conforme o mostrado no filme Gattaca, do final da década de 1990. Também caberia considerar os aspectos éticos de tais conhecimentos, como, por exemplo, a devassa à privacidade individual. Afinal, os dados pessoais precisariam ser alimentados no modelo de IA, para possibilitar as análises e previsões.

São muitos os pontos envolvidos no tema e de diversa natureza. Experimentamos tempos, simultaneamente, maravilhosos, pelas possibilidades que nos abrem, e assustadores, pelos usos potenciais de tais conquistas. Somos uma geração de transição, entre o que era e o que pode vir a ser. O futuro nos dirá. Esperemos que não seja apenas mais uma estimativa de uma inteligência artificial.

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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8 Comentários

  1. A Cris pega em nossa mão, apresenta a manchete “Uma IA seria capaz de estimar a data da morte de uma pessoa” e… faz a gente dar um rolê fantástico entre passado e futuro, revisitando lembranças de filmes e livros icônicos até um mangá Mara!
    O que ela quer com isso?
    Como excelente professora (porque está nas veias e na alma), de forma (pseudo) despretenciosa, apresenta-nos os perigos aparentes e ocultos que vivemos e os riscos que corremos ao explorarmos a angústia ontológica da finitude.
    Essa crônica é um excelente exemplo dos pensamentos sistêmico e crítico em ação. Duas competências muito cobiçadas atualmente por empresas que desejam dominar as tendências nos negócios e, certamente, estão atrás de pesquisas como essa.

  2. As possibilidades da IA não me surpreendem, a humanidade parece determinada a dominar tudo, inclusive o hoje ainda impossível. Mas a ideia de viver no mundo assim assusta muito, pelo menos a mim.
    As reflexões pertinentes da Cristina servem de alerta.

    1. É isso aí, Sonia. A gente tem tanto potencial, mas, com frequência, mete os pés pelas mãos. É muito importante manter a mente acesa, questionar, refletir. Talvez, assim, seja possível evitar escolhas desastrosas. Quanto ao medo, também sinto, porém é preciso acreditar que o melhor é viável. Bjs.

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