Cristina Vergnano

Diferentes contextos, sentimentos equiparáveis

Já tinha escolhido o assunto para a crônica desta quinzena, quando fui surpreendida por um vídeo que minha sobrinha de onze anos postou no grupo da família. Pouco depois, novo vídeo, desta vez de sua prima de dez anos, fazia coro com a mensagem anterior. Isso me fez pensar: por que não?  Nas postagens, elas dedicaram uns bons minutos para mostrar e descrever (em detalhes!) os materiais que tinham comprado e os antigos que ainda usariam nas aulas de 2024. Eram canetinhas, lápis de cor, cadernos, cola, lápis e canetas, tesoura, necessaires de pano transformadas em estojos. Afinal, estamos às portas do novo ano letivo.

Vocês me perguntarão qual o interesse disso. Para começo de conversa, ri comigo mesma do seu entusiasmo. Não por achar cômico ou tolo, mas porque me vi, também, há muitos e muitos anos atrás, vivenciando igual sensação. Mais de cinquenta anos nos separam. Diferentes tempos, realidade distinta. Os materiais escolares de então eram menos variados, menos coloridos: estojos de madeira ou lata, cadernos em brochura de capa mole, fichários sisudos, adaptadores para aproveitar até o finalzinho dos lápis, pranchetas de Eucatex, maletas de couro ao invés de mochilas.

Outra diferença crucial está na forma de compartilhar a novidade. No passado, se quiséssemos mostrar a alguém esses tesouros, precisaríamos receber sua visita, ou levar toda a tranqueira até sua casa. Sempre poderíamos, claro, descrevê-los por telefone. Isso, porém, implicava certos problemas. Primeiro, o interlocutor não veria o que se apresentava, precisaria imaginá-lo. Depois, ter um aparelho não era algo fácil: os planos de expansão custavam caro e ofereciam poucas linhas. (Imagino que a nova geração, hiper conectada e cujos celulares são extensões de si, deva ficar horrorizada com tal cenário.) Havia, também, o custo: para contar tudo direitinho, com a ênfase requerida, demoraria e não sairia barato.

As meninas, ao contrário, lançaram mão, dada a distância física entre elas, da videochamada e do envio de gravação em vídeo. Em criança e adolescente, eu sonhava com isso, assistindo a séries de ficção científica. Ou seja, a fantasia da infância virou realidade, nos aproxima e garante a troca de momentos especiais. Para minhas sobrinhas, tal modo de comunicação é bastante natural, não envolve qualquer admiração ou desconforto, como, suponho, poderá causar em umas pessoas da minha faixa etária ou mais velhas.

Imagino que, entre vocês, leitoras e leitores, alguns aspectos subliminares ao tema serão questionados. Em parte, estou de acordo. O consumismo exagerado, fomentado pelas publicidades de volta às aulas; o prejuízo ambiental implicado na fabricação de vários desses itens, muitas vezes comprados sem necessidade; o baixo cultivo do reaproveitamento e da reciclagem; a desigualdade social que faz com que muitas crianças não possam usufruir do maravilhamento de arrumar seus materiais escolares para um novo ano letivo. Todos são pontos relevantes e precisam estar nas pautas de debates, em nossas reflexões e no processo educacional das novas gerações. No entanto, quis enfatizar nesta crônica o sentir.

Existe um encantamento (para mim e, pelo visto, para as meninas) na atividade de escolher o que faz parte do equipamento escolar. A seleção das capas de cadernos com personagens de histórias que nos são caros nos embarcam na fantasia. A delícia das cores variadas dos lápis, das texturas dos materiais, dos cheirinhos de alguns deles estimulam os sentidos. São os penduricalhos nas mochilas, indicando nossa identidade. Cada objeto fala um pouco de nós e nos ajuda a viajar e sonhar. Não importa tanto se são caros ou chiques, mas se nos marcam e nos mostram. É aquele aroma de coisa nova somado à satisfação de perceber que objetos queridos ainda podem continuar nos acompanhando.

Talvez porque eu gostasse da escola, esse ritual ganhava significado especial, parte do processo, da construção de uma cena. Não o será para todos, nem ocorrerá sempre da mesma maneira. Foi assim para mim, por muitos anos. É, também, para essas sobrinhas nascidas no século XXI. Duas gerações compartilhando imaginários. O que posso dizer? Os contextos são, sem dúvida, bem diferentes. Os sentimento, embora nunca sejam idênticos, podem, contudo, ser equiparáveis. No final, o sonho e a delícia são o que conta.

___________

Link da foto em destaque: autoral.

Mostrar mais

Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

Artigos relacionados

4 Comentários

  1. Por não ter tido na infância, ainda hoje faço questão de montar meu estojo com tudo que preciso e, principalmente, que não preciso, mas adoro!
    Sou a mãe que, na contramão das outras, briga porque a filha não quer o conjunto completo de canetas com glitter. Como pode não querer??
    Estimulo ao máximo esses momentos, essas escolhas e a aventura por garimpar tais tesouros que, se não facilitarão, alegrarão os dias.
    Obrigada, Cris. Assim como na crônica anterior, seu resgate de infância nos torna saudosos e, ao mesmo tempo, gratos pelo vivido e pelas conquistas que tivemos ao longo do caminho.
    Já ansiosa pela próxima!!!

    1. Oi, Alessandra, muito obrigada pelo carinho e interesse. Fico feliz em ter levado você nessa viagem e achei curioso o detalhe da “briga” com a sua filha. Creio que esses pequenos detalhes do cotidiano despertam sentimentos, sensações, reflexões e são uma matéria ótima para crônicas. Estou muito satisfeita com a participação na “Entre Poetas e Poesias” e com a repercussão que meus textos tiveram até agora. É uma parceria gostosa com colegas escritoras e escritores e com as leitoras e os leitores. Bjs.

    1. Olá, Roberta. Desculpe a demora em responder, mas não tinha recebido o aviso de seu comentário. Eu é que agradeço a sua leitura e feedback. Espero contar com outros momentos de troca por aqui com você. 😉 Bjs.

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo