Cristina Vergnano

Espiral de dominós

Queridas leitoras, queridos leitores, a crônica desta quinzena foi, originalmente, publicada no dia 08 de março, sexta-feira passada, no meu blog, por ocasião do Dia Internacional da Mulher (https://www.tecendooverbo.com.br/2024/03/08/espiral-de-dominos/?doing_wp_cron=1710112134.7903470993041992187500). Sei que o tópico já está fora da sua data, mas, ao ler o que segue, vocês entenderão o motivo de eu publicá-lo aqui na Revista. Além do mais, o acho de suma relevância e sempre atual. Aproveito, também, para convidar vocês a visitarem o Tecendo o verbo (https://www.tecendooverbo.com.br ) e verem o que mais aparece por lá, ok? Será um prazer.

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Entre a dengue do meu marido e a minha covid, tenho tido uma semana complicada, logo, sem planos de escrever. Não porque faltasse vontade ou temas a abordar, mas pelo cansaço. Hoje, contudo, Dia Internacional da Mulher, vi circularem tantas mensagens, que se tornou algo inevitável. E cá estou, diante do computador, traçando estas linhas.

Sempre me ponho a refletir nessas ocasiões. Conforme muitas dizem (e, creio, quase todas pensam), a mulher, como qualquer ser humano, não deveria necessitar de um dia especial. Sua valorização precisaria ser diária, permanente. Porém, reconheço a relevância da data, pois nos leva a dirigir os holofotes para os muitos problemas que ainda oprimem mulheres mundo afora. Isso, por um lado. Por outro, nos ajuda a reconhecer o mérito da luta pela igualdade e justiça e as inestimáveis contribuições do gênero feminino para a humanidade.

Estamos tão acostumados a associar ciência ao universo masculino, que chegamos a nos surpreender com nomes como os de Nise da Silveira, Ada Lovelace, Marie Curie, Gladys West, Ester Sabino e Jaqueline Goes, Jocelyn Burnell, Lise Meitner, Grace Hopper, Rosalind Franklin, Maria Montessori, que tiveram participação revolucionária em seus campos. E as mulheres brilham, igualmente, nas artes, como, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Cecília Meirelles, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Djanira, Cacilda Becker, Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Natália Timberg, Ruth de Souza, Cleyde Yáconis, Chiquinha Gonzaga, Rita Lee. Estão presentes, também, na política, no ativismo e, inclusive, em situações de conflitos armados, como: Maria Felipa, Maria Quitéria, Marielle Franco, Malala Yousafzai e Greta Thunberg. Eu poderia encher páginas à exaustão com nomes daquelas que fizeram e fazem a diferença, entrando para a história pela sua garra, engenho, participação, força e criatividade. Peguei algumas, quase ao acaso, apenas como exemplo da amplitude de sua capacidade, tantas vezes ignorada e menosprezada.

Gostaria, contudo, de chamar a atenção para o mínimo, o invisível. Quem nunca viu aquele efeito curioso e bonito da derrubada em sequência das peças de dominó arrumadas em fila? Um simples toque no primeiro desencadeia uma reação que segue inevitável até cair a última peça. Não há nenhum glamour especial que diferencie as pedras do jogo. Cada uma delas é parte do conjunto e contribui, silenciosa, para o movimento do todo.

Se já é difícil, num mundo que insiste em dar primazia ao masculino, à força, ao poder e ao dinheiro, reconhecer o mérito feminino, imagine fazê-lo nas pequenas ações cotidianas. Falo daquelas que permitem o movimento das subsequentes pedras de dominó da vida.

Grande parte das personalidades que citei alcançou realce num âmbito tradicionalmente de homens, o que lhes dá ainda maior relevância, porque lhes custou bastante consegui-lo. Entre as próprias mulheres, com triste frequência, escutamos o desejo de terem nascido varões, ou, em outros casos, a crítica às companheiras de gênero que não saem dos papéis tidos como femininos por excelência. Da minha parte, sempre me orgulhei de ser quem sou e de ter escolhido, por gosto, nunca por medo a enfrentar desafios, o magistério como carreira. Por isso, um pouco na contramão do elogio às figuras de destaque, chamo a atenção para a importância advinda do cuidado pouco perceptível, de tomadas de decisão anônimas, as quais, se não modificam o mundo, são capazes de mudar indivíduos e, por extensão, fazer girar a história, como na espiral dos dominós. É a mulher pobre e trabalhadora que arruma sempre um meio de juntar um dinheirinho para realizar um sonho seu ou de sua família. É a mãe que, observando suas crianças, percebe determinadas inclinações e busca atividades ou pessoas que as ajudem a desabrochar. É a profissional comum, empenhada, no dia a dia, em realizar sua tarefa com correção e honestidade. É uma vizinha que se dá conta da ausência de outra, vai procurá-la e prestar-lhe ajuda. É aquela que leva uma pequena flor para alegrar uma sala austera e brindar um pouco de luz a quem a ocupa.

Não existe brilho em nenhuma dessas ações, as quais só se manterão nas memórias das gentes-peças de dominó que foram postas em movimento por elas. Estamos viciados em grandes feitos, em nomes nos meios de comunicação, nas premiações, na fama. Eu nunca seria capaz de negar o valor real das inúmeras mulheres, cujas vidas estão gravadas nos anais da história, responsáveis por conquistas meritórias. Apenas, no espírito da data comemorativa, queria lembrar e dar destaque àquelas invisíveis, mas fundamentais com suas singelas realizações, que, a seu tempo, também, modificam o mundo.

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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