Cristina Vergnano

O que os olhos veem

Numa manhã dessas, olhei distraída para a xícara de chá, onde, poucos minutos antes, eu havia misturado as fibras solúveis. Surpreendi-me com o desenho formado na superfície do líquido, o qual interpretei como uma galáxia se movendo lentamente em espiral. Pensando a respeito, me lembrei do ditado “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Depois, fazendo uma associação com a minha galáxia na xícara, refleti que poderíamos assumir o oposto como igual verdade. Afinal, minha visão causou uma leve surpresa, algum contentamento e me ajudou a divagar por caminhos fantásticos. Apenas em uma coisa ponho reparo: na preponderância do coração em todo esse tema do olhar, embora reconheça tratar-se, aqui, de uma metáfora.

Vocês vão rebater que o ditado se refere aos sentimentos provocados por certas atitudes, como a mágoa em face a uma traição, o medo ante uma ameaça, a raiva derivada de uma trapaça. Se não tomarmos conhecimento de sua existência e não as virmos, nada sentiremos. Em parte, é fato, embora eu ache que a percepção do oculto, mesmo sem o ver explicitamente, pode bem se pôr de manifesto e criar certo desconforto. Quem já não passou por isso alguma vez, não é? No entanto, retornando ao tópico, no que se refere à essa visão que preenche lacunas, descobre trajetórias alternativas, adivinha formas e cria personagens, defendo que nos afastamos do âmbito do coração e nos aproximamos ao da mente, mesmo considerando o aspecto metafórico.

Ao visitar o Museu das Ilusões, pude desfrutar uma série de instalações que brincam com nosso cérebro a partir da percepção visual. É impressionante como somos capazes de construir cenários que inexistem, ou, ao menos, o fazem de maneira distinta de como supomos percebê-los. E esse fenômeno não se limita aos estímulos imagéticos.

Num processo de leitura, por exemplo, não lemos palavras ou letras isoladas. Identificamos partes, saltamos de umas a outras e as juntamos, dando-lhes sentido. Por esse mecanismo somos capazes de completar espaços vazios e mensagens truncadas, a fim de alcançar um todo compreensível. Com frequência, ocorre comigo de, ao olhar placas de carros, eu ter a curiosa tendência a identificar palavras, onde só há algumas letras sem conexão. Ao vê-las, contudo, se dispara algum gatilho na minha cabeça e, na mesma hora, penso num vocábulo. Algo como olhar “LVE” e ler “LEVE”, ou “LAVE”, ou “LOVE”, ou “LIVE”.

Essa aptidão humana pode ganhar contornos divertidos e até líricos em situações cotidianas. Quem nunca se pegou admirando as nuvens no céu e imaginando metamorfoses? Saímos de leões para pássaros, de navios para espaçonaves, de gigantes para bailarinas, apenas acompanhando a ação de uma brisa sobre o conjunto das nuvens. E o que dizer dos sustos infantis, enxergando monstros nas sombras e nas manchas dos nós da madeira de armários, ao observá-las da cama, com a cabeça sob os lençóis, no quarto às escuras?

Nossos olhos funcionam como lentes. Captam uma realidade flexível e virtual, porque só se concretizará após ser modulada pelo próprio olhar. Enviam essas imagens ao cérebro, onde ocorrerá a mágica de sua mudança nas mais variadas criações. Assim, deixemos nossa imaginação voar nas asas do vento, viajando nas águias, hipogrifos e aeronaves formadas pelos flocos de nuvens sobre o azul. Abramos nossa visão às possibilidades inusitadas que a vida oferece em cada detalhe, como na galáxia dentro da xícara de chá.  O que nossos olhos virem, deste modo, se tornará poesia, paisagem, personagem e história.

 

 

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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4 Comentários

  1. O que seria de nós sem a criatividade e sem as palavras para guardá-la e a recordar. Bela reflexão, Cristina.

    1. É a mais pura verdade, Paula. Não sabemos o que veio antes, se a palavra ou o pensamento. Mas, seja qual deles for, fazem parte de nossa humanidade e precisam ser cultivados. Obrigada pela leitura. Bjs.

  2. Que nossos olhos continuem vendo a beleza do mundo e a magia da vida, independentemente dos anos e dos muros que carregamos.

    1. A vida é bela e mágica, mesmo ante adversidades. Cabe a nós descobrirmos sempre os caminhos para fazê-la brilhar, não é? Obrigada pela leitura, Alessandra. Bjs.

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