Cristina Vergnano

Amoras maduras

Catando, pela terceira vez só hoje, mais amoras maduras no quintal da minha sogra, lembrei-me de duas ideias que fazem eco com o prazer de colher e comer fruta no pé. A primeira, uma máxima da jardineira Carol Costa, algo como: a natureza é generosa. A segunda, uma observação de Ailton Krenak: sua pena das pessoas residentes nas grandes cidades.

Nasci, cresci e vivo no Rio de Janeiro, uma metrópole cheia de gente, prédios, carros, engarrafamentos, insegurança, mas, também, com uma natureza especial composta por montanha, floresta e praias. Meu bairro possui vários recantos arborizados e a vista dos morros cobertos pela Floresta da Tijuca. Ao entrar na minha rua, por exemplo, após andar poucos metros, já sentimos o ar mais fresco e os ruídos urbanos amortecidos. De suas árvores vêm a sombra, o farfalhar das folhas ao vento, as borboletas, pequenas abelhas, cigarras no verão e os diversos pássaros. Ainda assim, ao morar em apartamento, não tenho a sorte, com frequência, de comer frutas tiradas da árvore com minhas mãos.

Quando eu era pequena, esse desfrute telúrico acontecia na casa dos meus avós paternos. Lá, tínhamos a jabuticabeira; o pé de seriguela e o de chuchu dentro do galinheiro; a horta; o pé de caqui; muitas flores e a parreira do vovô. Apesar de tudo isso, tratava-se apenas de uma casa de dois quartos com quintal, no centro de Miguel Pereira. Desde o ponto de vista infantil, contudo, parecia todo um mundo a ser explorado e saboreado.

Minha sogra mora num dos distritos da serra de Macaé, também no estado do Rio. Sua casa e o quintal têm tamanho reduzido. Conseguimos, apesar disso, plantar uma boa variedade de vegetais ali: coqueiro, limoeiro, pé de jambo, de abiu, dois de fruta de conde, dois pequenos de café, a amoreira, uma jabuticabeira, pitangueira, roseiras, uma hortinha e várias plantas ornamentais em vasos. O clima é bastante quente e úmido. Logo, a vegetação, além de embelezar o ambiente e nos dar frutas gostosas e orgânicas, ajuda muito no controle da temperatura, tornando-a menos sufocante.

Enfim, todas essas lembranças e sensações começaram a partir da colheita das amoras. Amo essa frutinha roxa, com seu azedo-adocicado. As que compramos nos hortifrutis da vida costumam ser desenxabidas, só com boniteza. A gente paga caro para tirar pouco gosto do bocado. No entanto, as colhidas no pé, crescidas em quintais sob o sol, quase selvagens, essas são especiais! Têm sabor de infância, de brincadeira e atiçam o paladar.

A nossa amoreira concorda plenamente com a assertiva da Carol Costa. Em 2023, pese às podas necessárias, sem, entretanto, um planejamento estruturado; ao calor escaldante; ao excesso de chuvas alternado com períodos de seca; ela foi pródiga. Floresceu e frutificou ao longo de todo o ano, com abundância, e permaneceu assim no início de 2024. Resultado: muitas amoras para fazer geleia, virar sorvete e saborear in natura a cada visita.

Para mim, o mais fantástico da árvore é ver como seus frutos amadurecem em etapas, de um dia para o outro. A gente se coloca no meio de seus galhos tombados para baixo (uma verdadeira cabana verde) e colhe, colhe, colhe e tem a impressão de que esgotou a safra. No dia seguinte, porém, volta e descobre outras tantas maduras, prontas para serem degustadas, ao lado das de vez e de várias ainda verdes, promessas para breve. Há outro efeito curioso, um jogo de esconde-esconde. Ao catar amoras, puxando galhos para facilitar o alcance daquelas mais altas, muitas estão ocultas sob ou por trás de folhas. Ao mudar o ângulo, as maravilhas escondidas se deixam ver e a partida recomeça.

Cada jornada rende, na alta temporada, quase meio quilo de frutas, deixando muitas mais à nossa espera. E nem estou contando com as que ocupam as porções superiores dos ramos, longe de nossos dedos gulosos. Estas ficam para pássaros e insetos. Afinal, a natureza é sábia, fecunda e dadivosa.

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Link da foto em destaque: autoral.

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Cristina Vergnano

Carioca, tijucana, nascida em 1961, foi professora e pesquisadora em compreensão leitora, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em 2018, se aposentou. Desde então, é escritora, blogueira do "Tecendo o Verbo" e fundadora do Grupo Traçando de escritores. Sua produção se volta para as crônicas, os artigos de opinião e os contos. Teve textos selecionados no Prêmio Rio de Contos, segunda edição e no Prêmio Arte e Literatura USP 60+ de 2021. Publicou contos em coletâneas.

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32 Comentários

    1. Giselle, que bom você ter saboreado! Sejam amoras, pitangas, mangas roubadas ou goiabas do Chico Bento, vale esse gostinho de infância, brincadeira e felicidade ingênua.Bj.

  1. Encantada com seu texto e com a doçura das frutas colhidas direto do pé! Aqui em Belém tenho uma gigantesca mangueira bem no meu quintal, um privilégio! 🥰

  2. Ah, que delícia de crônica. Resgatou o lado bom da minha infância. Não aquele das cobranças e tarefas escolares (sempre tenebrosas), mas das férias na casa da avó, das tias, no interior do Paraná. Lá comia fruta quem tirasse do pé. Podíamos escolher sentar sob a figueira, esfaquear as melancias ou ainda subir nas laranjeiras. Que saudades da roça e dos bichos que povoaram meus pés de lama e meu, sempre vivo, gosto por mato.
    Gratidão pelas lembranças tão doces!

    1. Alessandra, um dos prazeres de escrever crônicas de memórias, daquelas que vão lá no fundo do baú atrás de pequenos detalhes, é conseguir criar essa cumplicidade, despertar esses sentidos. Obrigada a você por trocar esses momentos comigo. Bjs.

  3. Cristina, que texto delicioso e refrescante, como se estivesse lá de baixo do pé de amora!
    Também lembrei da minha infância, quando íamos a Pilares, na casa dos meus tios e primos, ia entrando e já começava a sentir o cheiro de carambola!
    Aqui em Salvador, lembrei da casa minha avó e das groselhas🥰

    1. Ana Cristina, como disse um amigo, acho que todas as pessoas têm alguma experiência assim, não é?! Gostoso saber que minha crônica pôde despertar essas memórias positivas e carregadas de sentimentos. Obrigada. Bjs.

  4. Sou testemunha de muito desse relato. Parabéns pela crônica prima. Beijo grande

  5. Texto delicioso. Despertou memórias afetivas porque eu também cresci numa casa com árvores frutíferas. Um beijo grande.

  6. Você descreveu com perfeição meu sentimento quanto às amoras compradas em mercado. Fi-lo duas vezes: a segunda apenas para não me ater à péssima impressão deixada na primeira. Que delícia o gosto de amora do pé! Nunca tive a sorte de colher muitas nas amoreiras de meu convívio — ou talvez fossem tantas mãozinhas infantis nos galhos (primos, irmãos, coleguinhas…) que mal sobrassem frutas para pôr em uma bacia. Seu texto me fez querer plantar uma amoreira!

    1. Petruska, não deixe de tentar, nem que seja uma amoreira bonsai. Se houver sol, água, adubo, pode ser que ela recompense você com seu carinho em forma de fruta. 😉 Bjs.

  7. Que crônica deliciosa essa sua cara Cristina. Lembrou-me muito minhas idas à casa de mina avó na infância, onde encontrava 2 goiabeiras, 1 mangueira, 1 abacateiro, uma jaqueira, um pé de fruta-pão, 2 jambeiros e 1 pitangueira. Era uma festa! Especialmente nas goiabeiras, onde uma vez quase que me esborrachava no chão para alcançar uma goiaba apetitosa e tentadora. Obrigado.

    1. Bessa, não pode haver honra maior do que receber um comentário de um cronista como você. Ainda mais com toda a riqueza de sua bagagem e as intertextualidades que constrói. Obrigada pela sua leitura generosa. E, sabe, creio que concordo com Kilmer. 😉 Grande abraço.

    1. Oi, Cristina. É sempre gostoso perceber que nossos escritos são capazes de tocar as pessoas. Obrigada pelo feedback. Quanto a ser “escritora apaixonada” desde a mais tenra idade… isso já vai longe! (rs,rs,rs) Bj

  8. Cristina, o seu relato mágico faz-nos transportar ao período mais maravilhoso da nossa vida: a infância! Felizmente, os mais antigos a tiveram na sua plenitude e, com muito mais contato com a natureza, sabem perfeitamente o que você descreveu. As frutas consumidas “ao pé do pé”, sob o sossego dos recantos ainda virgens, inatingidos pela famigerada especulação criminosa dos gananciosos. Você tem sorte por desfrutar desse maravilhoso privilégio. Siga feliz, preservando esse lado infantil intacto e, obrigada por nos compartilhar tão deliciosa experiência.

    1. Oi, Sonia. O prazer é meu em poder caminhar com os leitores por meio das palavras pelos territórios mágicos. Creio que a consciência ecológica está chamando muitos da nova geração para os espaços naturais, o que é ótimo. Quem sabe, ainda resgatam a Terra para as novas gerações, não é? Bj

  9. Que texto leve e prazeroso. Eu não posso ver um pé de acerola na rua que paro para fazer minha colheita. Mesmo a minha academia sendo distante de casa, às vezes vou a pé porque no caminho há exatamente um desses pés que encantam os lugares menos esperados para uma colheita rs
    Um grande abraço,
    Leandro Bolivar.

    1. Olá, Leandro. É muito interessante perceber como o ser humano tem, em geral, uma ligação forte com a natureza. Ela se manifesta no carinho por bichos de estimação, no cuidado com as plantas, no saborear frutas tiradas do pé, ou, simplesmente, em curtir uma paisagem natural. Gostei de sentir a conexão que minha crônica conseguiu estabelecer com esse lado telúrico de leitores e leitoras. Obrigada pelo seu comentário. Um abração.

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