Oswaldo Eurico Rodrigues

Uma mulher…

 

Hortênsias, Murcha, Flor, Seco, Flora

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Era uma garota. Loura. Olhos verdes. O sorriso brilhante igual a sua personalidade e capacidade para lidar com números. Fazia contas imensas sem o uso de calculadora. Era simpática e agradável. Não tinha mãe viva. Foi criada pelo irmão mais velho. Aprendeu a soltar cafifa, rodar pião e outras chamadas “coisas de menino”. Nunca aprendeu a dançar balé, mas se equilibrava com a graça e a força de uma primeira bailarina diante dos dilemas da vida. Não aprendeu as danças de roda ou a manter um bambolê girando em volta da sua cintura, mas contornava as dificuldades como ninguém. Aprendeu como craque as driblar os problemas e seguir em frente.

Bem nova, já trabalhava na padaria do bairro (um lugar com nome de santa profanado pela poeira do lugar). Era interessante vê-la calcular o preço final da nossa compra mais rápido do que a caixa registradora. Acertava sempre o valor. Quando voltava do trabalho e encontrava alguma senhora carregando sacolas pesadas, se oferecia para, pelo menos, dividir a carga. Muitas vezes, avançava um pouco do seu destino e deixava as mercadorias na casa da pessoa ajudada. O sorriso idoso de ternura brotava de lábios já murchos que deixavam aparecer o vazio de uma boca já não mais ouvida.

Quando os meninos estavam jogando bola na rua esburacada, ela dava alguns passes por alguns instantes e seguia seu caminho. A molecada vibrava e pulava com seus pés russos de poeira e dedões com tampão arrancado nos chutes das pedras. E seguia seu caminho. Um sorriso iluminado aqui, umas palavras simpáticas ali. Num gingado próprio ia caminho a fora em calção e camiseta.

Seu rosto nunca havia recebido batom. Seus lábios eram finos e delicados num tom entre o rosa e o vermelho. Seu rosto era corado. Seu olhar vivo sem precisar de nenhum contorno. Não era muito alta, também não era baixinha. Tinha uma altura ligeiramente superior as das mulheres do lugar, coisa de um ou dois dedos a mais. Como não usava saltos altos, igualava-se em estatura às demais. Às vezes, ficava até mais baixa. Uma mulher linda sem vaidades. Os homens jovens gostavam da sua amizade. As mulheres nem tanto. Somente aquelas já idosas com as lentes da sabedoria ou as menininhas sem os filtros do preconceito instalados. Quase sempre eram as filhas de mulheres de simplicidade de alma, filhas dessas senhoras sábias. O mesmo raciocínio se dava em relação aos senhores idosos semelhantes em nobreza a essas anciãs. Quanto aos demais, gravitavam em torno do limbo da maldade e da ignorância incumbidos de transformar a vida da jovem radiante num inferno.

O nome da garota não saia das bocas malditas. Os olhares e comentários cresciam conforme a idade da jovem avançava. Chegou um momento em que ela não mais suportou. A natureza resolveu dar um grito. E o fez tão forte que seu abdômen ficou enorme. Suas bermudas e camisetas foram substituídas por vestidos estampados compridos até as panturrilhas. Corpete sanfonado em lastex e alcinhas que davam um laço sobre cada ombro. Não podia mais gingar, embaixadinhas jamais. A única bola agora eram os próprios pés inchados. A maquiagem que nunca existiu se transformou em melasma. O nariz ficou mais dilatado. Nove meses depois, uma criança estava em seus braços. Não era uma menina igual a ela. Era um menino moreno. Depois, veio mais um menino louro e de olhos claros como os dela. Ambos puxaram a sua simpatia e caráter. Tinham uma masculinidade sem agressividade ou autoafirmação. Transformaram-se em rapazes queridos no bairro. Trabalharam cedo e eram capazes de aprender rápido assim como a mãe deles.

Hoje, essa mulher incrível não mais está entre nós. Foi levada à loucura servida com fel e vinagre em taças de brutalidade e não resistiu. Os números da crueldade morreram com ela. Seu nome não está registrado nem mesmo por mim que tanto a amava. Um amor a me impedir de pronunciar seu nome de flor tão rico e belo como sua personalidade e seu rosto. Deus sabe de quem eu escrevo. Se algum dia esse texto chegar a algum contemporâneo dela, saberão de quem eu falei. Espero que o leitor seja tomado apenas pela saudade e não pelo remorso.

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