Oswaldo Eurico Rodrigues

Pudim no carro

Pudim no carro

 

Você já notou como ouvimos sons estranhos o tempo todo? São os sons da natureza e os ruídos produzidos por máquinas, além do que se desprende de nós em nossas atividades. A gramática já deu um jeito de registrar esses testemunhos orais de nossa audição. As interjeições são a expressão das nossas emoções. Há alguns gramáticos que não consideram nossos suspiros, gritos e gargalhadas como palavras. Não importa! Eu uso e abuso das interjeições no meu dia a dia. Provavelmente, você também usa. Como temos necessidade de registrar tudo, criamos as onomatopeias. Essa tentativa de reproduzir na escrita o que juramos ter ouvido. Eu pensava, quando em tenra idade, que as onomatopeias eram universais. Para mim, todos ouviam os mesmos sons, por isso todos escrevíamos palavras como “toc-toc” ou “tic-tac”. Ledo engano.

Cachorros não latem da mesma forma fora do Brasil. Os gatos estrangeiros miam diferentes dos gatos tupiniquins. As aves daqui gorjeiam diferentes das aves de lá. Os sinos tropicais soam melodias únicas. Espirramos, tossimos, choramos, gritamos, gargalhamos com outra dramaticidade. Nossos carros freiam e aceleram em outro ritmo. Todo e qualquer movimento de ir e vir na Terra Brasilis gera sons e ruídos peculiares, ganham nova dimensão. Chega de blá, blá, blá! Vamos ao que interessa.

Voltava de São José, bairro onde trabalho no Colégio Estadual Francesca Carey. Tomei o ônibus até o Centro do bairro de Cabuçu, um dos distritos de Itaboraí, município onde moro. Desci do veículo e embarquei num automóvel de lotada até o Centro do município. De Cabuçu até o Centro, o caminho é muito bonito, tão bonito quanto o caminho de Cabuçu a São José. A paisagem foi modificada, mas ainda é muito verde. Há árvores espaçadas e não tão altas como vemos no restante da Mata Atlântica. Há alguns trechos, que lembram vagamente o cerrado brasileiro ou a savana africana. Num trecho a que chamam de Sapê, há um capinzal praticamente dourado. Lá no fundo a silhueta do bairro de Manilha. Poderia levar horas descrevendo o cenário cinematográfico do meu caminho. As emoções vêm através do olhar. Alguns solavancos para trazer uma dose de adrenalina a que já me acostumei e nem sinto mais. O verde do lugar compensa e filtra a poeira. Os veículos sofrem nos trechos de terra ou onde o asfalto está desgastado. Não há carro que resista a tanto sacolejo. Como automóveis não podem falar, eles emitem ruídos capazes de nos deixar alertas ou, no mínimo, curiosos.

Tão logo o motorista ligou o carro, comecei a ouvir algo diferente do comum quando se dá partida num automóvel. Relaxei. O carro era velho. Veículos antigos emitem sons estranhos mesmo. O auto corria. Em pouco tempo, uma passageira resolveu comentar. “Esse barulho é normal?” O motorista respondeu algo como se concordasse com a fala da senhora. Ele mostrou-se preocupado, mas disse da necessidade de continuar usando o carro para trabalhar. É seu ganha pão. No mesmo instante, vieram à minha cabeça questões sobre a luta diária pela sobrevivência em nosso país (na realidade, no mundo inteiro). Não comentei nada sobre os ruídos do carro. Quando chegamos próximos ao Sapê, eu perguntei a ele se o nome do local era mesmo esse. Ele confirmou. Eu perguntei se, pela estrada lateral, era possível chegar à Manilha. Ele confirmou novamente. Na realidade, já sabia dessas informações. Tentei apenas desviar nossa atenção do barulho. Eu estranhava o som. Parecia uma voz repetitiva.

Eu ouvia “Tudinho, tudinho, tudinho”. Novamente, “tudinho, tudinho, tudinho”. Mais uma vez “tudinho, tudinho, tudinho”. Não consegui rir, apesar do meu senso de humor. Como poderia achar graça em algo que não funciona bem? Comecei a ficar preocupado e a desviar meu pensamento. Os outros também ouviam “tudinho”? O motorista lida com uma máquina de transportar pessoas. Eu leciono para crianças, adolescentes e adultos. Uma das senhoras parecia ser uma dona de casa com uma criança (provavelmente neta). A outra mulher talvez trabalhasse no Centro da cidade. Parecia ter vindo do Largo da Ideia, bairro da minha São Gonçalo. Enfim, éramos cinco indivíduos. Cinco identidades distintas. São diferentes formas de ver e ouvir o mundo.

Depois de um tempo, não ouvia mais “tudinho”. Agora era “pudim”. Pronto! Entrei em crise de abstinência! Muito tempo sem comer doces. Seria uma projeção do meu subconsciente querendo alguma guloseima? O “pudim” voltava a minha cabeça. “Pudim, pudim, pudim”. Não! Não! Não! Pudim era demais. Calibrei meus tímpanos para ouvir “tudinho, tudinho, tudinho”. Assim, por convenção, cheguei à conclusão de que o veículo dizia “tudinho” para mim. Assim, esqueci do pudim. Comi algo saudável quando cheguei ao meu destino.

Como será que interpretamos o mundo ao nosso redor? As palavras ditas pessoalmente têm o mesmo peso independente da expressão facial do falante? O corpo de quem fala faz coro com a voz dele? Há harmonia entre os interlocutores? Uma mensagem escrita transmite as reais ideias do emissor? O que fala uma motocicleta barulhenta? Uma boca gulosa sorvendo macarrão cheio de molho assobia ou beija? Depende! No macarrão há queijo?

 

 

 

 

 

Mostrar mais

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo