Oswaldo Eurico Rodrigues

Letras feridas

 

 

Os alunos acabaram de fazer a prova. Lá do fundo, ouço a voz do João Pedro: “Professor, o senhor conhece a Roseana Murray?” Sou leitor dela, mas só a vi de longe num evento. Não tive o prazer de uma conversa. Uma ex-aluna minha tem o contato dela. Ele olhou para mim depois da minha enxurrada de palavras e disse: “Pois é… Ela morreu!”. Minha reação não foi disfarçada! Como? É fake News! “Não, professor! Veja aqui”. E me mostrou o celular. Foi rolando a tela e vimos que a escritora não estava morta apesar do ataque brutal de três cães pitbulls. Foi encaminhada ao Hospital Alberto Torres em São Gonçalo. O restante da turma ficou calada ouvindo a nós dois. Tive de seguir a aula quebrado por dentro, mas com a esperança de que a escritora sobrevivesse. Ao chegar a outra escola, descobri que ela havia morrido. Compartilhei oralmente a notícia trágica com alguns amigos. A Adriana, minha mulher, disse que a Roseana Murray não estava morta. Estava muitíssimo mal no hospital, mas sobrevivia.

Às vezes, sou assaltado por pensamentos horríveis. Por que determinadas coisas ruins acontecem com pessoas boas e talentosas? Claro que não desejo um ataque de pitbulls a ninguém, porém confesso: essa investida contra uma poetisa doeu muito mais em mim. Sei que as palavras da Roseana Murray estão vivas nas mentes de seus leitores e guardadas em livros e arquivos digitais, todavia a criadora foi ferida! Seus poemas serão lidos de outra maneira agora depois desse ataque. A criação se transforma. Somos criaturas também. Em eterna recriação, seguimos nossas histórias de apogeus e declínios constantes. Somos invadidos e invadimos, ganhamos e damos autonomia, conquistamos e concedemos a liberdade. Tudo isso no período do sempre de cada um. Alguns vivem tanto e tão bem a ponto de inaugurarem eras. Outros nascem em fase transição entre períodos. As idades são registradas. Conseguimos a soberania?

Roseana Murray é moradora de Saquarema, cidade da Região dos Lagos, do Rio de Janeiro. Tem o saudável hábito de fazer caminhadas logo pela manhã. Na sexta-feira, dia 5 de abril, aconteceu o episódio trágico envolvendo animais criados não sei por quem para serem horrendos. Não quero atacar aqui os parentes de Cérbero, entretanto fica difícil disfarçar a minha indignação. Os bichos acabam pagando pela negligência de seus donos, muitas vezes, feras piores do que os quadrúpedes de cuja guarda detêm. Em seu direito de ir e vir, foi violentada. Como preservar sua integridade? Não é dado ao ser humano o poder de vencer cães ferozes sem usar armas. Deveríamos dominar os animais, porém esses nos dominam, pois o afastamento da natureza nos enfraquece. Conseguimos acabar com o habitat de pássaros e abelhas polinizadores. Atropelamos a outros animais em rodovias. Em contrapartida, criamos monstros em laboratório. Alguns deles materializados em determinadas variedades de cães. Sem querer criar polêmica, qual o motivo de alguém querer criaturas tão ferozes e com força nas mandíbulas capaz de fraturar ossos? Não creio em mero amor aos canídeos. Se as intenções não são as de usar determinadas raças como arma, os donos dessas feras deveriam usar focinheiras em seus animais ao sair de casa.

Perdoem-me as palavras cheias de raiva. Fui mordido pela indignação. Preciso tomar vacina. Muitas vezes, acabo por liberar certa acidez e veneno. Não foi o que aprendi ao ler os poemas da Senhora Murray. Ela nos mostrou “A chave” para a liberdade de se expressar e encontrar o que há de melhor nesse mundo. Ela construiu “A casa de todos os ninhos”, lugar onde há espaço para todas as formas de vida. Regeu suas letras de acordo com a “Partitura” de uma sinfonia de letras sonoras e lindas. Não conheci a autora na minha infância. Passei a lê-la já adulto. O meu olhar não era mais o do menino. Era o do estudante de Letras, do professor, do tio da Isabelle, do Yuri, do Nícolas, do Matheus e da Lívia. Tive a ousadia de reger uma orquestra literária magnífica para a minha plateia de sobrinhos e alunos do fundamental. No palco com a Roseana Murray, Ana Maria Machado, Ruth Rocha e os saudosos Sylvia Orthof, Tatiana Belinky, Bartolomeu Campos de Queirós, José Paulo Paes e Ziraldo. Os aplausos, claro, eram evidentes. Como vibravam minhas crianças e eu também. Conseguíamos desenvolver leituras incríveis. Incríveis desafios. Só um não consigo vencer: lidar com a ausência desses escritores entre as pessoas capazes de andar, respirar, tocar e serem tocadas. O pai do Menino Maluquinho dizia que esse garoto se oferecia para ficar no gol nas partidas de futebol. Ele segurava todas as bolas, lidava bem com todas as situações. Ele, porém, não conseguiu segurar o tempo e se transformou num cara adulto, mas não qualquer adulto. Ele se tornou um cara legal, mas o cara mais legal do mundo. Hoje não estou conseguindo segurar a dor da perda do filho mais ilustre de Caratinga, das Minas Gerais. Soube do falecimento do Ziraldo enquanto escrevia esse texto sobre o ataque à poesia.

Estava digitando e já pensando em como terminaria. Nunca pensei em escrever sobre algo tão trágico. A arquitetura textual foi se fazendo sem um projeto elaborado, pois estou em ruínas por dentro. Aproveitei o que resta de civilização em mim e fui para a fundação do edifício textual. Não consegui chegar a erguer todas as paredes. Minha mulher, sentada no sofá ao lado, recebeu de sua amiga a notícia do falecimento do Ziraldo. Meu Deus! Um choque atrás do outro! Meu texto foi mudando de rumo. A matéria-prima foi alterada, mas o prédio precisa existir. E sigo tentando chegar ao ponto de laje e daí fazer o telhado. Estou cansado, sem capacidade de tocar a obra em frente. Como gostaria de ouvir novamente a fala rouca de quem apresentou ao mundo a cor Flicts e o Planeta Lilás. Não me esqueço do dia em que estava com a minha sobrinha mais velha na Bienal do Rio de Janeiro. O Ziraldo autografava um livro para mim e outro para a Isabelle. Alguns repórteres apareceram daquele jeito de abutre como muitos deles se comportam. O pai do Menino Marrom, do Menino mais Bonito do Mundo e de todos os meninos e meninas de todas as idades disse aos profissionais de imprensa: “Vocês não estão vendo que eu estou aqui com o Professor Oswaldo e a Isabelle? Quando eu acabar, atendo a vocês”. Fiz menção de sair e ele me disse simplesmente: “Fique o tempo que quiser. Esse evento é para vocês, professores, e para as crianças, não é Bebele?” Agora estou aqui tentando segurar uma lágrima.

As letras do país foram atingidas. No espaço de dois dias, dois autores sofrem as investidas dessa vida nada justa.

Sinto-me capaz apenas de fazer como o Menino do Rio Doce e observar o curso das águas no seu serpentear engolindo o mundo até o mar onde deposita seus tributos. Vamos ao espetáculo das águas. Preciso chamar “O mestre de cerimônias”. Ele vai “costurando o espetáculo”. “O mágico” chega. Tudo “vira magia, vira dança”.

Vou procurar a “Receita de espantar a tristeza”. Vou ver e enxergar melhor depois da “Receita de olhar” o mundo sob a ótica da poesia. Procuro nos “Classificados poéticos” o “ABC” do conforto, da esperança e da fé.

 

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Um Comentário

  1. Que texto cheio de emoção, sinceridade, indignação e perplexidade!!? Com certeza o ataque dos cães Pitbull foi terrível, para dizer o mínimo! Que a Roseana possa se recuperar desse trágico ocorrido! Quanto ao mestre Ziraldo, fica a gratidão por nos dar suas histórias e construir nossas memórias e fica a tristeza pela perda desse carismático autor!
    Parabéns pelo texto meu amigo!

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