Rua da feira
Na minha rua, sexta é dia de feira.
Um vendedor de laranjas, em frente à minha janela, apregoa:
– Essa é doce e eu garanto. Bolinha de açúcar, pingo de mel.
Outro, adiante, retruca:
– Vem comprar comigo, vem!
Há aquele que disputa a atenção dos fregueses com uma oferta irresistível:
– Pode provar! Se não gostar, não paga!
Lá de longe, vem um fio de voz que anuncia:
– É tudo fresquinho. Aproveita, freguesa!
– Que delícia, hein?!
Os cheiros se misturam e tudo me lembra a infância. Ia com meu pai à feira do Andaraí, na rua Araripe Júnior, aos domingos. Parávamos em várias barracas e, enquanto ele escolhia o que comprar ou conversava com alguém, eu ficava a olhar o movimento. Comecei ali a construir o hábito de observar as pessoas.
Gente de todas as idades, cores, tamanhos e formatos passava por mim num indo e vindo infinito. Sapatos, botinas, chinelos e pés descalços arrastavam-se e entrecruzavam-se pela rua de paralelepípedo.
Vi gatunos que surrupiavam frutas, pertences e dinheiro. Galanteadores que ganhavam sorrisos. Moças que roubavam corações. Vi o feirante esperto, que roubava no troco ou no peso, mas que, entretido demais, enganando os outros, não percebia, embaixo do seu nariz, a troca sorrateira de olhares entre a sua companheira e um barraqueiro vizinho.
Via meu pai.
Orgulhava-me por ele ser tão conhecido. Todos o cumprimentavam. As rápidas conversas que travava com amigos com quem esbarrava quase sempre terminavam em gargalhadas, porque ele sempre tinha algo engraçado pra dizer.
Chamavam-no, de longe, fazendo referência ao Botafogo, seu time, à mancha que ele tinha no pescoço ou ao seu ofício de ourives.
Às vezes, percebia algo estranho nas conversas do meu pai com os conhecidos com os quais cruzava, porque o tom de voz baixava, e o diálogo se dava em cochichos ou por sinais quase imperceptíveis. Sabia que, nessas horas, eu deveria me tornar transparente, e era o que eu fazia: fingia estar distraído com outra coisa.
A feira é também, para mim, objeto de estudo. A língua portuguesa, que me sustenta há mais de trinta anos, vem me buscar em casa, insinuante e oferecida, porque sabe que eu não resisto a ela nunca, escrita ou falada. Gosto de ouvi-la sem dono, quando ela é mais saliente. Sou capaz de ficar horas a fio só ouvindo e me deliciando com as construções inusitadas que saem ao sabor das negociações, das brigas, das implicações e das paqueras, na feira, no ônibus, na rua. Gosto de ouvir a língua de Camões misturar-se com a língua do povo. “Essa é doce e eu garanto, hein…”
Não preciso da feira e ela até, confesso, me atrapalha a vida. Eu a frequento para viajar ao passado. Mais ou menos como o atormentado Bento Santiago, tento “atar as duas pontas da vida”, e restaurar na maturidade a infância. E a feira me permite isso. Seu cenário preserva um tempo que se foi e me leva de volta àqueles dias de pesada felicidade.
Pago caro pelas frutas, legumes e verduras que compraria pela metade do preço nos supermercados só pelo prazer de ouvir as conversas, de ver as pessoas e de sentir os odores desse evento que, pra mim, é como um túnel do tempo, que me reconcilia comigo.
E que me lembra meu pai.
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