Ze Arnaldo

Pipa avoada

  1. PIPA AVOADA

Não gosto de pipas. 

Comecei a alimentar o desamor por elas quando percebi que não levava jeito para o negócio. Não sabia sequer colocar o pião no alto e era, sem dó, ridicularizado pelos colegas por minha inaptidão. 

Lembro-me da ocasião exata em que nossas desavenças começaram. Foi em Coroa Grande. Eu era pequeno, tinha uns seis anos. Meu pai pegou uma pipa voada e com muita linha que caíra em nosso quintal. Colocou o artefato no alto facilmente, graças ao vento forte característico da região, ele que também não era um exímio soltador, e me deu a linha para segurar. Passou algumas instruções básicas, fez algumas recomendações e me deixou lá, na calçada em frente à casa, às voltas com o controle da pipa serelepe, que teimava em não atender aos meus comandos. Só fazia o que queria até que se soltou de mim e se foi, livre, pela imensidão do céu, viver sua vida.

Vi-a desaparecer no azul e fui para perto dos meus tios com quem meu pai conversava. Depois de algum tempo (naquela época, criança era um ser quase invisível…), um adulto notou a minha presença e perguntou:

– Ué, cadê a pipa?

Eu apontei:

– Tá lá, no céu…

Todas as cabeças voltaram-se para cima a vasculhar a imensidão, à procura da tal pipa, que foi avistada, depois de muito esforço, pequenininha, já quase em Marte.

Meu pai me interrogou:

– O que você fez?

– Ela queria ir, eu dei linha. Até acabar.

Todos riram, mas era nítida a decepção do meu pai. Para mim e para ele ficava claro que eu não tinha sido feito para aquilo.

O que era apenas uma antipatia, fruto da minha falta de traquejo para o negócio, foi se tornando, nos anos seguintes da infância, uma incompatibilidade que beirava o ódio. O motivo? A pipa muitas vezes impediu ou encerrou as peladas, minha diversão favorita na época. Era uma dificuldade juntar um grupo suficiente de amigos para jogar uma bola quando as pipas, sensuais, bailavam oferecidas nos céus. A molecada vivia de cara para o alto, pescoço torto, a olhar infinitamente para elas, acompanhando o cruza, na ânsia de perceber primeiro que uma delas voava sem dono.

Uma pipa voada arrastava atrás de si uma pequena multidão de meninos e até de alguns marmanjos, todos ávidos por pegá-la. De preferência sem máculas e com muita linha. Pegar um pião nessas condições, para garotos pobres como nós, equivalia a encontrar um bilhete premiado. 

Naquela época, as dificuldades eram muitas. Lembro-me de amigos que soltavam pipas com linhas cheias de marimbondos, que era como se chamavam os nós feitos por eles para emendar os pedaços de linhas achados no chão, desprezados pelos mais abastados, ou presos em árvores e nos fios de alta tensão.

Esse era o principal motivo da minha antipatia por aquele artefato feito com varetas de bambu, unidas com linha, cobertas com papel fino: elas atrapalhavam o nosso futebol. O pior era quando no meio da pelada, alguém gritava a palavra maldita: 

– Voou!

A esse comando, que parecia ensaiado, saíam quase todos, desesperados, atrás do pião que voara, abatido num cruza por outro pião dirigido por soltador mais habilidoso ou com um cerol melhor. Nessa caçada esquisita, pulando muros, atravessando na frente das lotações e dos bondes, os meninos ignoravam o perigo em busca da suprema felicidade de voltar com o troféu valiosíssimo na mão, a pipa.

Hoje, dirigindo por aí, nas férias, indo ou voltando da praia, vejo-as no céu, no seu bailado esquisito em que só mexe os ombros, pra lá e pra cá, arrastando atrás de si a longa cauda, e aprecio os garotos e marmanjos que sabem manejá-las e fazem delas o que bem querem. Adoraria saber conduzir uma pipa numa dança assim, como vejo os bons soltadores fazerem.

Levei cinquenta anos para descobrir que, no fundo, meu ódio é inveja.

 


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