Ze Arnaldo

Passeio

Gosto muito de caminhar. Sempre que posso, prefiro ir a pé a algum lugar a me deslocar de ônibus, carro ou uber até o destino. Nesses momentos em que caminho, indo ou vindo, penso na vida, percebo coisas, encontro pessoas e falo sozinho. Pois é, sou desses.

Comecei a falar sozinho na infância, como todo o mundo, mas não larguei o hábito, como quase todo o mundo, ao crescer. Continuei a conversar com amigos imaginários, na maioria das vezes disfarçadamente, entredentes, sem gestos. Há momentos, porém, em que a conversa está tão animada que me pego falando alto e gesticulando como um italiano.

Com quem conversas, tresloucado amigo?, perguntar-me-ão os incrédulos. Os meus interlocutores são os mais diversos. Converso com pessoas famosas – Machado é ótimo papo, apesar da gagueira – e com desconhecidos. Com estes, no mais das vezes, tenho embates políticos, filosóficos, religiosos ou futebolísticos em que eu sempre venço, é claro, com argumentos sólidos e bem construídos.

Já vieram bater um papo comigo Noel Rosa – foi num bar -, Chiquinha Gonzaga, João Antônio, Pixinguinha (ele me soprou umas melodias, que esqueci…), Elis, Darci Ribeiro, Leila Diniz. Com esses, mais escuto do que falo. Fico mais à vontade para falar com os anônimos.

Nessas caminhadas, não são raras as vezes em que defendo, para uma banca embevecida, a tese que escrevo há décadas. Descrevo um gol antológico que fiz na quadra do Magnatas em jogo decisivo. Um gol, aliás, visto e aplaudido pelo Nei Conceição, que estava perdido no clube, naquela manhã de domingo da década de 1970. Narro como recuperei um celular roubado das mãos do ladrão, simulando ter uma arma dentro da mochila. 

Andando, às vezes, falo do romance que estou escrevendo, dos personagens, do final surpreendente. Construo hipóteses para ocorrências da língua portuguesa, explico a crase e mostro a diferença entre orações causais e explicativas. 

Em outros passeios, recomendo livros, faço crítica de filmes, falo mal do governo, analiso partidas de futebol. E soluciono os mais graves problemas nacionais e mundiais com ideias esplêndidas e originais, que esqueço assim que ponho os pés de novo na Terra.

Conto para os atentos amigos que me acompanham como conquistei, com uma piada, a moça mais bonita do baile. Confesso bobagens que fiz, injustiças que cometi, erros dos quais me arrependo.

Enfim, andar me abre o apetite para o pensamento e, consequentemente, para a fala. Como gosto muito de pensar andando e falando, ponho-me peripateticamente em movimento para balançar as ideias e fazê-las saltar daqui de dentro para o mundo, a partir do trampolim da língua. 

Ou seja, na falta de alguém para bater um papo, elejo uma figura que admiro ou crio um amigo imaginário novo para me acompanhar por aí, enquanto caminho. No fundo, sei que falo é pra mim, pois sou reconhecidamente meu melhor interlocutor. Disse, no início, que gosto muito de caminhar, mas acho que gosto mesmo é de conversar. Comigo mesmo.

Link da imagem: Foto de beytlik no Pexels: https://www.pexels.com/pt-br/foto/estrada-via-panorama-vista-7522138/

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