Ze Arnaldo

Sem direção

Nunca fui bom motorista. Sou muito distraído, por isso, dou trabalho em dobro ao meu anjo da guarda. Estou sempre tirando finos dos carros do lado, freando em cima do carro da frente. Nos sinais, só ando quando o motorista do veículo de trás buzina. 

Sou capturado por letreiros, cartazes, propagandas em que observo a língua sempre sedutora e novidadeira que está neles. Deixo-me levar pelo cachorrinho fofo que passa na calçada, pela mulher bonita que me atravessa e nem vê. Acompanho o velhinho que empurra o tempo e leva uma estação para dobrar a esquina.

O carro acaba sendo, pra mim, uma casca, que me protege e me esconde. Dentro dele, canto a plenos pulmões, falo sozinho, penso nessas bobagens que escrevo. Dentro dele, posso praticar o voyeurismo social, doença que me acometeu na infância e que se tornou crônica, com o tempo. 

Observo as pessoas e imagino suas vidas. Terá filhos a triste senhora que passa com o olhar perdido? Votou em quem o senhor que marcha como se fosse cumprir missão patriótica? O que preocupa esse cidadão de cenho franzido que nem percebe que o sinal abriu enquanto ele ainda está na faixa de pedestres, olhando, ávido, o smartphone? Aonde vai com tanta pressa a distinta mulher de vestido longo?

Essa está com jeito de apaixonada. Aquele passa, certamente, por problemas existenciais. Não há ninguém que possa ajudar a velhinha que carrega bolsas tão pesadas? Que maldade fizeram com a criança que chora descontrolada no meio da rua? 

O carro, que me serviria, teoricamente, para uma locomoção mais rápida, acaba, assim, me atrasando. Já errei o caminho, agarrado numa canção que tocava no rádio. Mais de uma vez me peguei indo para o trabalho, quando deveria me dirigir ao mercado. Entro em ruas que me levariam para endereços antigos, em vez de seguir em frente, para casa.

Recentemente, tomei uma decisão: serei mais atento ao volante. Olharei apenas para os carros que dividem com o meu as ruas esburacadas da cidade. Prestarei atenção total aos sinais e me guiarei obedientemente pelo aplicativo de mapas do celular, para não enveredar por trilhas que me desvirtuam e me levam para lugar nenhum.

Ignorarei os estudantes que atravessam entre os carros, falantes e distraídos. Não me preocuparei com os entregadores que serpenteiam entre os carros, em suas bicicletas alugadas, desafiando a física e a morte. Não farei sequer um sinal da cruz, caso aviste uma vítima da guerra diária que travamos no trânsito, nem me preocuparei em saber se o infeliz era casado, se tinha filhos, se a família já sabe de sua morte.

Seguirei meu caminho com a atenção voltada tão somente para o tráfego e para os carros. Darei de ombros para o que se passa lá fora, para as pessoas que atravessam e para as que dirigem; largarei de mão a vida e a morte alheias, atropelados e atropeladores, amados e desalmadas. Chega de olhar, às escondidas, a vida dos outros. Perderei assuntos, mas ganharei minutos preciosos nas idas e vindas da vida. 

Dirigirei atentamente, mas depressa, sem música e sem prosa. E só relaxarei, inexoravelmente, quando a voz metálica do aplicativo me acordar, dizendo peremptoriamente: você chegou ao seu destino!

Link da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/procurar/motorista/

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