Valdeci Santana

Menino de guerra

 

Menino de guerra

A pá da retroescavadeira recua em seus movimentos mecânicos, se inclina e qual uma gigante boca metálica, abocanha com cuidado o maior numero de defuntos, estendidos desordeiramente ao longo do campo. Empurra-os para a enorme vala sepulcral coletiva, sem qualquer cerimônia.

Em tempos de guerra, não há velórios, não há cortejos funerais e tão pouco formalidades. A guerra abrevia tudo. Principalmente o tempo.

No céu enfumaçado, cinza e pesado como chumbo, os abutres imitam os aviões de guerra e dão rasantes para o campo, tentando se fartarem das mutilações dos mortos.

O silêncio dos mortos parece engolir o ruído da máquina. O som das explosões é assustador, mas, o silencio que nasce depois delas e torturante. O silêncio na guerra ensurdece a alma.

Dos escombros daquilo que um dia fora uma casa, tão maltrapilho e diluído quanto o cenário, um pequeno garotinho observa aquele enterro coletivo.

Suas mãos frágeis abraçam os joelhos contra o peito. Os cabelos estão tão despenteados quanto as copas das poucas arvores sobreviventes. Dos olhos, descem grossos fios lágrimas, que deixam rastros no rosto imundo. Seus dedos estão dilacerados, pois, dedicara as ultimas horas, tentado remover os escombros que soterraram sua mãe e sua irmã. Ele queria tanto desenterrá-las e enterrá-las ao seu modo, com as condolências que elas mereciam. O pai, talvez estivesse morto numa trincheira, entre ratos e orações. E isso fazia dele, um típico garoto de guerra. Órfão.

Ele não tem visto muitas crianças. E isso o preocupa. Não sabe que a guerra leva as crianças e as devolvem como soldados, ou cadáveres.

Tinha a nítida sensação de ser a ultima criança da terra. Esquecido pela guerra e por quem luta nela.

A retroescavadeira acaba de lacrar aquela cova gigantesca. Devolvendo ao pó, quem do pó viera. Deixa para trás o fúnebre silêncio esmagador do campo. E o solitário espectador oculto nos escombros. Mais tarde, naquele mesmo dia, o órfão solitário dirigiu-se para aquela cova gigantesca, vigiada pelos cães e pelos abutres, que disputavam os espólios deixados pelos corpos. Seu corpo frágil ia inclinado, tamanho o peso do regador, que gotejava agua.

Na cova coletiva, o menino pôs-se a regar o solo com obstinação de um lavrador.

Curioso, um comandante freou seu batalhão que marchava para a batalha e seguiu para o menino. Quis saber que maluquice intrigante seria aquela.

—Estou regando a terra, para que nasça mais gente.

E pela primeira vez naquela guerra, o experiente comandante, que de tudo já tinha visto em campo de batalha, chorou.

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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