Valdeci Santana

A dívida

A dívida

Chegou ao funeral pouco depois do defunto. Meteu-se num canto e calado ficou.

Limitou-se a um aceno para a viúva.

Chapéu enfiado na rala cabeleira branca, mãos atrás das costas e seu basto bigode, que era o único traço de vaidade sobrevivente da juventude.

Olhou esguelhado para a urna funerária, onde jazia seu freguês de longa data. A rixa entre os dois era sabida. Uma dose de cachaça e um torresmo que o falecido havia “pendurado”, resultaram num conflito que se arrastara por mais de duas décadas.

O falecido era freguês assíduo de seu botequim. Também eram assíduas as cobranças em relação à pequena divida que a parte se recusava prontamente a pagar.

“Faltam a pinga e o torresmo” Advertia habitualmente o credor, quando o freguês se debruçava no balcão para saldar o consumo do dia.

“Deixa estar, pois, já até me esqueci” Reagia ele, para o divertimento dos presentes. Deixando o outro corado de raiva.

Debruça para o defunto, os olhos margeados por rugas. Estica o queixo como quem se certifica que não se tratava de uma zombaria, e conclui que não é brincadeira. Era o fim.

“O diabo que não se atreva a abrir-lhe crédito, pois, é bem capaz deste muquirana falir o inferno.” Resmunga para si.

Esfrega as mãos com impaciência. Lança um derradeiro e languido olhar ao defunto e sai.

Já na rua, vasculha os bolsos do paletó, encontra o pequeno lenço, com o qual enxuga uma lágrima que lhe desce.

fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/cerimonia-evento-velorio-funeral-7317678/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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