Valdeci Santana

Parede de pau-a-pique

Parede de pau-a-pique

Dia de rebocar as paredes da nossa casinha de pau-a-pique era uma festa.

Levantávamos cedo, Quincas e eu, e íamos com o pai ao arroio, de cujas margens subtraíamos a argila para encapar as estrias da parede gasta.

Gostávamos do frescor da argila e de como nossa pele se tingia. Alegrávamos com a bagunça permitida naquele dia.

A vizinha Marianazinha que não saía do nosso quintal, se juntava a nós, naquilo que para os adultos era uma árdua tarefa necessária à revitalização do lar, e para nós, uma brincadeira adorável.

Deslizávamos nossas mãozinhas empapadas de argila no vão das tabocas, cuidando para não deixarmos visíveis os rastros dos nossos dedos, senão o pai ralhava.

Irmãos lado a lado, com as silhuetas ossudas coladas nas paredes. Mãos imitando os artistas, numa arte que a pobreza nos obrigava. Éramos semelhantes em aparência e se Quincas fosse alguns centímetros mais alto, também seríamos no tamanho. Também nos assemelhava uma mania herdada do pai. Um reflexo nervoso que se sagrava como uma assinatura de paternidade. Um tique que somente percebíamos que estávamos a executá-lo, quando a mãe se zangava:

—Os três! Tratem de enfiar as línguas na boca!

Só então percebíamos a nudez do nervo úmido exposto no canto de nossos lábios. Toda vez em que nos concentrávamos em alguma tarefa, deixávamos escapar a língua para fora dos beiços.

Mariazinha se cansava rápido da labuta, e sempre travessa, tratava de combater o tédio incitando brincadeiras, atirando em nós, os respingos de argila de suas mãozinhas rechonchudas, o que logo se tornava uma guerra. Quase sempre era eu quem a alcançava na corrida e besuntava seu corpo com argila. Quincas era mais vagaroso, com seu trote peculiar, com os pés abertos como dois ponteiros indicando os ombros.

Gostávamos da presença daquela vizinha gorducha. Ela trazia brilho para a monótona escuridão do nosso lar. Por mais que fossemos uma família feliz, o recato e as formalidades não nos permitiam liberdades efetivas. Marianazinha surgia para quebrar tal protocolo. Até o pai, sempre circunspecto e pouco acessível, deixava escapar algum risinho de canto de lábio, diante das travessuras da menina. O que causava em nós, principalmente na mãe, uma pitada de ciúmes.

A cada dia eu me apaixonava mais por Marianazinha. A ponto de cultivar esperanças de um relacionamento entre nós. Sentimento que ia ficando evidente com o passar dos dias. Eu idolatrava cada traço de sua existência. As bochechas infladas, com covinhas no canto da boca, os cabelos sempre despenteados, os pés encardidos nus na face do solo. Tudo me encantava.

Minha paixão sigilosa tornara-se pública, quando Quincas flagrou-me a desenhar na parede, meu nome ao lado do nome dela, envoltos num coração. Uma clara declaração de amor. Na verdade, sempre que retocávamos a argila de nossas paredes, eu redigia tal declaração, depois cobria cada palavra sem deixar vestígio. Uma confissão segredada no coração da parede de pau-a-pique.

O irmão delatou-me ao pai, que reagiu como uma tempestade. Ofendido, ele defendera a honra da vizinha com vigor que talvez nem o falecido pai de Marianazinha tivesse. Chamou-me nomes, ameaçou partir-me ao meio e por aí adiante. Foi preciso a mãe se entrepor e advogar em minha defesa. A mãe disparou contra os exageros do marido, ao que este apontou para minha falta de respeito. Advogada nata nas causas do lar, a mãe chegou a afirmar que fazia votos para que o filho se enroscasse com a vizinha quando a idade permitisse. Ao que o pai se revoltou.

Ter a mãe favorável à causa avivava minhas esperanças. Tanto que nos dias seguintes eu só fazia pensar nisso. Até certo fim de tarde, quando desobrigado de tarefas corriqueiras, eu observava a mãe inclinada no tanque, batendo nossas roupas. Seus olhos se espicharam para a rua, e lá se fixaram com tanta dedicação, que atraíram os meus. Foi quando vi o pai passando diante do portão vizinho, onde a viúva mãe de Marianazinha se exibia. O pai rasgou um sorriso carregado de brilho e gentileza que jamais usara em casa. Disse-lhes palavras num gesto íntimo e confidente, ao que ela correspondera de igual valor. A mãe devolveu o olhar para as roupas encardidas, escondendo-o num semblante triste e resignado. Fiquei frustrado em relação ao caráter paterno e perplexo com a cena que eu acabara de assistir. E profundamente sem chão eu fiquei, quando deslizei o olhar até Marianazinha que brincava na rua. Percebi que ela corria com os pés para fora exatamente igual ao meu irmão. E como uma punhalada letal, uma clara tragédia que sempre ali estivera exposta, vi como ela exibia a língua no canto da boca enquanto corria.

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/photos/abstract-envelhecido-pano-de-fundo-1846822/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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Um Comentário

  1. Valdeci, que bela crônica. A alegria brotada da simplicidade cotidiana e o nascimento do primeiro amor são tão doces. Mas, a seguir, você nos brinda com a reviravolta triste da traição, que dupla, magoa a mãe e mata o sonho do filho.

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