Valdeci Santana

Virus mortal

Vírus mortal

—E então, doutor?

Aflita, a mãe esfrega as mãos.

O pai observa com o cenho cerrado.

O médico contorna a mesa com seus envelopes e suas radiografias. Estetoscópio pendurado sobre a gola do jaleco e uma expressão séria pendurada no rosto.

—As noticias não são boas! O filho de vocês é um artista.

A mãe acometida de um susto tremendo, se cala. Boquiaberta arregala os olhos.

—Artista? –Reage o pai incrédulo. Depois, esconde o rosto entre as mãos e murmura:

—Não pode ser. O senhor tem certeza, doutor?

—Fizemos todos os exames possíveis. Não há dúvidas.

—Meu deus! –Exclama a mãe, voltando lentamente à realidade. —O que faremos agora, Eugênio?

—O que faremos? –Reage o pai com rispidez. —E eu é que sei? A culpa é toda sua. Quem mandou mimar este menino. Por mim, não teria comprado aquele violão e tão pouco aqueles pincéis que sujam tudo.

Transpassada, a mãe busca socorro no médico.

—O senhor tem certeza de que não é um câncer ou um mal cerebral?

—Negativo! O filho da senhora é um autêntico artista.

—E há cura, doutor? –O pai exibe um desespero controlado na voz, discrepante com o seu rosto afogueado.

—Infelizmente, seu filho está num estágio avançado da arte, que é quando a necessidade de produzir arte é aguda e insaciável. A arte não é mais um hobbie para ele, é uma filosofia de vida. Ela já acredita que pode viver de arte…

A mãe não se contém e desaba em lágrimas.

—O que podemos fazer agora, é tentar conter o avanço do vírus, com tratamentos anticulturais, destes financiados pelo governo. Existem aos montes no Brasil. Tem sido bastante eficaz em alguns casos. Que é quando o individuo aprende a acreditar que a arte despadroniza as pessoas. E que a vida sem a arte pode ser mais rentável, mais produtiva. O tratamento leva sombra onde a arte acendera a luz.

—Ninguém pode saber disso, doutor! –Fala o pai com prudência.

O médico assente.

A mãe é mais profunda:

—Só de imaginar o meu menino sendo apontado na rua, como um vagabundo, aperta-me o coração. E ainda, sem falar nestes apreciadores de arte, que andam soltos por ai, seguindo os artistas, consumindo suas artes, motivando-os a produzirem cada vez mais arte. E os movimentos culturais? Jesus! Vão exibi-lo ao público, vão fazê-lo acreditar que as pessoas gostam de arte…

—Chega Maria! –Esbraveja o pai.

O médico tenta consolá-los com voz branda:

—Há maneiras de camuflar esta doença, mas, os efeitos colaterais são inúmeros. Em alguns casos resolve, por exemplo: eu mesmo tenho um primo pianista. Quem vê não imagina.

—O senhor!

Estupefata a mãe novamente fica boquiaberta e com os olhos arregalados.

—Sim, porém, somente a família tem conhecimento. Conseguimos reduzir sua arte quase a zero. Tanto que agora, ele tem pavor a exibição, quando muito, toca lá duas ou três canções quando está sozinho.

—Essa doença pode matar nosso menino, doutor? –Quer saber o pai, dando rumos efetivos na conversa.

—Indiscutivelmente! Mas, o pior de tudo, é que a arte é uma doença que mata lentamente, com pequenas porções diárias. O individuo começa a ver beleza em tudo, acreditar que com a arte as pessoas se tornam mais felizes. E então, ele começa a desenvolver mais habilidades artísticas. Seu filho, por exemplo, que hoje canta, dança e pinta, logo estará se arriscando em fotografias, instrumentos musicais, composições, declamações, e sabe lá o que mais, pois a arte possui muitas formas. Isso se não se meter a escrever versos. Vocês perceberão que ele se torará melancólico, com olhar saudoso sempre procurando onde aplicar a arte. Ele nunca se satisfará, sempre há de acreditar que poderá amplificar sua arte. E não adianta criticá-lo, pois, todo artista é altamente resistente a critica. Negligencia-lo talvez seja uma boa opção. Noutros dias, ele acordará alegre, e este é um sintoma extremamente perigoso, pois, um artista alegre, significa que ele encontrara uma forma de criar a arte em que ele andara pensando. Não é fácil conviver com um artista. Eles são capazes de moldarem nossas emoções. E logo, é bem capaz, que ele os convença a enxergar a beleza de suas criações…

—Doutor, a Maria desmaiou.

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/coronavirus-3992933/

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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