Oswaldo Eurico Rodrigues

O luxo nosso de cada dia

Sou filho de uma costureira e de um agente dos correios. Nossa educação era rigorosa, com muitos cortes e lacres. Não estou fazendo críticas aos meus pais. Pelo contrário! As podas nos fortaleciam e nos deixavam mais bonitos e nossas ações nasciam mais saudáveis. Mas não éramos imunes às pragas! Continuamos não sendo… Nossas decisões eram sujeitas ao crivo dos nossos pais. Se estivessem de acordo, recebíamos o selo e o carimbo. Poderíamos então chegar ao nosso destino com segurança. Os extravios eram raros. O rastreamento era praticamente perfeito.

Comecei falando das profissões dos meus pais porque são áreas de que gosto muito. Não sei costurar. Muito mal prego um botão. Mas aprecio muito os tecidos. Não aprendi a tecer com fios de lã, algodão ou linho. Crio tramas com palavras. Também não sei despachar correspondências. Meus textos vão até você com carimbos imaginários e autenticação eletrônica do site. Sou fascinado pelo papel. Textura ou lisura, opacidade ou brilho em minhas mãos. Os tecidos são como folhas resistentes a nos envolver. Podemos ler e sermos lidos através das roupas. O papel é o plano a ser estampado com nossas ideias. O tecido é plano estampado a transmitir diversas ideias.

Meu fascínio vai além das estampas, do brilho e textura. Papéis e tecidos têm resistências e preços diferentes. Papiro, papel de trapo, de linho, jornal, crepon, couchê, papel reciclado… Linho, brim, chita, gaze, entretela, crepe, seda… Nem toda lâmina é papel, nem todo pano é tecido. A tecnologia cria superfícies novas e nos deixa (muitas vezes) na superfície dos assuntos. Novas fibras, novas resistências; outras resistências, outras susceptibilidades…

Eu falei em susceptibilidade e talvez você tenha percebido uma certa crítica em relação aos comportamentos contemporâneos. Vou ser transparente: a crítica existe sim e abrange o passado também. Melindres pairam em todos os tempos prontos a cair sobre os mais receptivos e atenciosos. A diferença está na substância com que cada melindroso é constituído. Eu já deixarei isso claro como cristal.

Novamente voltando à casa da infância… Quando estávamos fazendo drama por motivos banais, minha mãe dizia: “Vocês parecem de seda!” Às vezes, ouvíamos: “quanta rasgação de seda” quando havia elogios mútuos em demasia. Essa imagem da seda ficou na minha cabeça. A ideia da suavidade e da delicadeza. Incrível: não associo esse tecido à fraqueza ou debilidade. Ele se impõe em sua nobreza com seu caimento impecável e seu brilho não ofuscante. Realmente, existem pessoas de seda. Não digo que seríamos exatamente nós, os filhos da Dona Eni Rodrigues e do Seu Oswaldo Taperoá. Nós tínhamos performances de seda de vez em quando sim, mas não sei se seria a nossa essência. Ainda estou analisando isso. Como estava dizendo, há pessoas de seda ainda. Já houve mais. Cada dia, passamos por transformações. A própria seda também. Antes, era uma fibra de origem animal vinda duma lagarta alimentada por folhas de amoreira. A China nos deu esse presente. Será que realmente essas criaturinhas eram alimentadas somente com folhas de amoreira? Tenho minhas dúvidas. De qualquer forma é algo fascinante, uma história de sacrifício. Confesso não ter pesquisado sobre a história da produção desse material. Não sei como seria o inseto adulto. Não sei se ele morre para que obtenhamos os fios tão preciosos. Gostaria de ver um dia a borboleta ou a mariposa da seda. Suas asas seriam mais macias em comparação às imagos de outras espécies? Deixemos para lá as conjecturas! Vamos avançar.

A fabricação da seda foi sendo modificada com o passar dos anos. Passamos da seda animal à seda sintética. Criaram-se materiais novos. Entre eles, o nylon e o tactel, muito práticos e versáteis. Também finos e de bom caimento, mas nada comparado à prima nobre. Vestir roupas de seda, lingerie ou cetim tornou-se um luxo cada vez mais distante, não só pelo preço desses materiais, mas também pela inadequação dos mesmos à lida diária da maioria de nós. Precisamos usar tecidos mais encorpados e resistentes como o brim em sua forma tradicional ou em jeans. Somamos e esses tecidos as camisetas sintéticas ou mistas e, praticamente, temos o uniforme da maioria da população. Em ocasião especial, as camisetas são substituídas por camisas de algodão com botões. Para mulheres um crepe. E a vida segue no vento que vira a página enquanto escrevo.

As pessoas também foram mudando no tempo e cada vez mais espaçosas. A delicadeza ainda existe. A sensibilidade também. Os suportes materiais dos sentimentos é que mudaram. Hoje, ainda conseguimos conversar com pessoas inteligentes e interessantes. Conseguimos ter acesso às obras de arte ainda que apenas como visitantes de galerias e museus. Muitos têm o privilégio de trabalhar em instituições de cultura. Outros, como eu, trabalham em instituições de ensino. Outro tipo de privilégio. Atualmente, acrescido de tensão constante. Para quem gosta de adrenalina, é ótimo! As pessoas de seda estão nas escolas, nos centros culturais, nas igrejas, nas empresas, nas ruas, em casa… Só que agora vem surgindo um grupo cada vez maior de gente linda, transparente, com uma densidade de existir bem maior do que as pessoas de seda. A suavidade está na transparência, na lisura, na limpeza do vidro. Sim! Hoje lidamos com pessoas de vidro. Algumas de cristal. Como há muitos descendentes de europeus no nosso país, vemos a todo instante cristais de Murano e Swarovski. Peças de alto luxo. Não temos só ascendência europeia, somos majoritariamente africanos. Da África, vêm diamantes e outras gemas de valor incalculável.

O luxo é algo almejado por muitos. Há até quem não consiga viver sem ele. Entre sedas e cristais (lindos e frágeis), ouro e prata (lindos e frios), há madeiras nobres. Material vivo da floresta com tenacidade e beleza, isolamento térmico e acústico. Beleza e elegância que vêm da terra. Não dura para sempre como os cristais, mas vivem por milênios se não houver incêndio.

As pessoas de algumas décadas eram de seda. Quando rasgadas ou furadas, poderiam ser remendadas ou receber aplicação de algum bordado capaz de esconder os estragos. Não raro, ficavam até mais bonitas. Para alguém de fora, aquela roupa estava linda e já foi criada com bordado. Só os de casa sabiam da cicatriz embaixo do aplique. De uns anos para cá, as pessoas de seda estão ficando mais raras. Às vezes, ficam escondidas debaixo de outros panos, raramente saem das camas. O número de gente de vidro ou cristal cresce muito. São duras e transparentes e, quando se quebram, precisamos transformá-las em mosaicos. Os encaixam não ficam perfeitos. A resina que os une aparece quase tanto quanto os cacos. Ainda há beleza. O perigoso nas pessoas de vidro ou cristal é que, quando se quebram, ferem os outros. Às vezes, o ferimento pode ser na jugular. A morte é certa.  Pessoas de ouro e de prata sempre existiram. São brilhantes quando polidas, precisam sofrer para manter a pureza, todavia são frias e duras ao toque. Caras, precisam ficar escondidas em cofres. Só saem de vez em quando em festas com muito segurança. Ou discretamente nas alianças de casamento. Outros metais assumem a sua aparência e brilho. O ouro e a prata verdadeiros são raros. Finalmente, temos as pessoas de madeira. Fortes, resistentes a pancadas, mas aconchegantes e belas. São silenciosas. Nobres que sabem estar entre plebeus sem os ofuscar. Quando golpeados ou queimados geram energia e ainda exalam perfume antes de se transformarem em cinzas.

 

 

 

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2 Comentários

  1. Busca por partilhar suas raizes, conhecimento, reconhecimento, admiração. São combustíveis excelentes para escrever. Um texto que envolve e te faz pensar junto com o escritor.Tenho certeza não vou pensar na seda da mesma maneira. Gostei!

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