Déficit de atenção

Eu vivo planejando viagens que nunca faço. Já estive em quase toda parte do Brasil e do mundo em sonhos, mas acordado. Vou e volto em minutos.

Funciona assim: vejo alguma coisa na tv, na internet, num jornal ou revista que me chama atenção sobre um determinado lugar. Uma paisagem, uma iguaria, uma peculiaridade cultural e, pronto: arrumo as malas do pensamento e me mando pra lá, sem escalas.

A coisa é tão real pra mim, que seria capaz de contar a quem me perguntasse peripécias da viagem, o hotel, o voo, as pessoas que conheci, as experiências culinárias, tudo. Lembro com detalhes de quando não estive no Nepal, atrás do nirvana (o estado psíquico-espiritual, não a banda). De uma incrível temporada fictícia no Havaí, daquela vez em que voei no pensamento até a foz do rio Araguari, no Amapá, para testemunhar a pororoca, e daquela outra em que larguei uma reunião chatérrima para sobrevoar os Alpes Suíços, antes que me chamassem de volta, para dar minha opinião sobre algo que não tinha nenhuma importância para mim.

Uma vez, fui à Espanha dos meus sonhos. Queria experimentar um Chorizo, bebericando um tinto de Bilbao, que os amigos que já foram pra lá de verdade dizem ser divino, numa bodega das Astúrias, respirando os ares do mar cantábrico. Quando desembarquei no sofá da sala, trazido repentinamente de volta pela campainha estridente e pelos latidos concomitantes da cadela, tinha ao meu lado umas fatias de mortadela e uma garrafa de cerveja pela metade. Valeu a viagem, apesar do retorno súbito.

Não viajo de verdade porque me faltam as condições mínimas: tempo, dinheiro e companhia, que sozinho eu não vou. Prefiro ir desse jeito, pela Imagination Air Line. Tudo é rápido, ida e volta, o atendimento é de primeira e as experiências são incríveis. Ah, e é de graça!

As propagandas de pacotes turísticos são sedutoras e, para elas, não sei se você já reparou, viajar é fugir do ramerrame diário, viver incríveis aventuras, experimentar novos cenários, mudar de ares. O que os anúncios nos jogam na cara, ao nos oferecer “noites mágicas em Paris com refeições e translado inclusos” é que a vida da gente é uma chatice só. As viagens seriam, então, pequenas fugas da vida normal, em que ganharíamos a liberdade, pulando os muros altos do cotidiano ou cavando túneis por debaixo da monotonia. O problema é que somos logo recapturados pela rotina, porque as sentinelas dos compromissos diários são implacáveis.

Não sei se viajo em sonhos por isso ou porque sou dado, mesmo, às evasões. Desde menino sou assim: na escola, acompanhava interessado os primeiros dez minutos das aulas; o resto do tempo eu me mandava pra longe dali. Deixava o corpo e saía pela janela, atrás de um passarinho que me roubara a atenção, ou pulava de cabeça pra dentro de mim, onde me encontrava comigo mesmo, que eu fui, quase sempre, a minha melhor companhia. Alguns professores diziam que eu era calado, mas prestava atenção. Outros, mais atentos, diziam que eu vivia era no mundo da lua.

O certo é que viajo por aí a vida toda e, por isso, acho que perdi muita coisa aqui no mundo real, inclusive namoradas, provas, amigos e empregos.

Dizem que são assim os poetas, nefelibatas, mas desconfio de que nesse tempo todo, esse meu jeito tenha sido, mesmo, só déficit de atenção.

Link da foto: https://pixabay.com/pt/photos/b%C3%BAssola-viagens-navega%C3%A7%C3%A3o-close-up-7592447/

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