Oswaldo Eurico Rodrigues

Dona Dondoca

Dona Dondoca

 

Quando ouvi esse nome pela primeira vez, eu o achei engraçado. Gostei dele. Gostava também da dona desse nome, minha vizinha de bairro. Ela morava na rua de trás da minha General Horta Barbosa. Era a Emílio Durval. Mas o nome da nossa personagem não era Emília. Incrível: até hoje não sei o seu nome. Para nós era simplesmente Dona Dondoca. De dondoca não tinha nada. Era trabalhadora, sem luxo. Aliás, era gente muito simples do povo dessa época e bem diferente da gente simples de hoje. Para falar a verdade, não deveria ter digitado nenhuma linha. Para ser coerente, deveria escrever à mão num caderno especial da cor da memória duma criança. As páginas foram arrancadas da espiral. Deveria, então, datilografar numa máquina manual. Ainda não havíamos comprado uma. Não tinha caligrafia (ainda não tenho). A história ficou presa (como tantas outras) num cesto de palha cheio de panos. Outros planos de histórias ainda esperam resgates de baús, cofres e paredes… Eu demorei muito para trazer de volta essa senhora muito magra e brasileiramente africana em roupas iguais as de todos os deste país caleidoscópio naquela e em todas as épocas.

Morávamos numa rua paralela a rua onde passavam os ônibus levantando poeira. Nossa casa era uma das poucas daquele lugar. Igualmente paralela era a rua da Dona Dondoca. O relevo deu ao meu logradouro alguns metros a mais e a rua da Dona Dondoca outros tantos. Era uma escada de ruas até se chegar ao topo suave daquela parte do Porto do Rosa. Descendo-se pelo lado oposto, chegava-se ao Mutuaguaçu, mas eu só fui descobrir isso tempos depois, nas minhas andanças. Eu tinha a mania de desbravar terras longínquas alcançadas a pé do portão de ferro da casa da Dona Eni, a costureira mais famosa do bairro e minha mãe. Saía para entregar as roupas das clientes (naquela época, eram chamadas de freguesas). Eu saia de calção e camiseta (às vezes, camisa de botões confeccionadas lá em casa mesmo na máquina Singer). Os pés sempre calçados em sandálias incapazes de me livrar da poeira do lugar. Pareço, ainda hoje, carregar um pouco desse pó em mim.  São como reminiscências da História anônima de tanta gente. Sempre ouvi dizer: quando morre um ancião na África, queima-se uma biblioteca. Eu guardei um pouco das cinzas da Dona Dondoca num pote de barro. É o barro ancestral do outro lado do Atlântico.

Não frequentava a casa da nossa personagem, mas lidava com praticamente todos os membros dessa família. Eles iam sempre buscar água no poço lá de casa (o melhor do lugar). Desciam num caminho ao lado da casa da Dona Maria José, que ficava ao lado da casa da Dona Zinha. Caminhava-se mais um pouco à direita e chegava-se ao nosso portão. Buscavam água em latas vazias de tinta de 18 litros (não sei por que diziam latas de 20 litros). “Seo Oswaldo, Dona Eni, bom dia! Posso pegar duas viagens d’água?” Era assim que diziam quando iam à casa de alguém buscar do precioso líquido. Cada ida era uma viagem de duas latas cheias presas nas extremidades duma vara de pau de mangue. Eles subiam e desciam com os recipientes pendentes em seus ombros. Devido ao exercício diário, desenvolveram braços com músculos bem definidos e magros. Hoje precisamos fazer exercícios na máquina Smith nos ginásios com pesos menores se comparados aos carregados pelas famílias desabastecidas do sistema na minha cidade. As pessoas dessa família eram como guerreiros massais só que muito mais baixos e nada austeros. Eram elegantes e esguios, mas simpáticos e acessíveis. Eram valiosos como o líquido na balança de lata e pau. Sabiam pesar com justiça os modos e as atitudes num existir nobre de gente plebeia. A matriarca da família não carregava água. Ela tinha outros atributos condizentes com o seu papel de grande mãe. Como disse, no princípio, era uma mulher preta, de estatura baixa onde se concentrava um grande caráter. Ela ia à minha casa, de vez em quando, ajudar minha mãe, mulher com três filhos pequenos. O mais velho era eu. Sempre era elegante e falava com voz alegre, porém contida nos bons modos trazidos de tempos imemoriais. Minha mãe também tem dessas maneiras de outrora. Antes de antes de antes, diante duma fogueira, aprendia-se sobre a arte de viver dentro e fora do clã. Aos sons de tambores ou sinos, vinham as marcações das músicas de se relacionar. Todos conseguiam afinação. Alguns, porém, eram virtuosos como a Dona Dondoca na sua suave melodia de existir.

Houve um dia, no entanto, uma coisa horrível. Meu pai tinha uma galinha de estimação. Isso mesmo: uma galinha com a cor das asas da graúna, mas não se chamava Iracema. Não tinha nome de gente. Era a galinha preta intocável. Recebia alimentação diferenciada e podia transitar livremente no quintal e até caminhar pela varanda. Era uma espécie de cachorro com asas. Comia na mão do seu dono. Era o xodó da casa. Até entre os animais existem privilégios! Também, no reino dos bichos, as regalias podem acabar a qualquer momento. E o dia da galinha preta não mais andar entre nós chegou! Ela foi degolada por engano. O algoz? Pasmem! Foi a Dona Dondoca! Já conto do ocorrido.

Minha mãe estava nesses desesperos de dona de casa com crianças e sogra em casa além das roupas das clientes para entregar. Quem veio nos salvar? Dona Dondoca! Minha mãe pediu para ela matar uma galinha para o almoço. Ela perguntou se minha mãe tinha preferência. Dona Eni, com seu filho mais novo chorando por sabe-se lá qual motivo, seu filho escrevedor desta história implicando com a irmã do meio e a minha vó dizendo como fazia com meu pai e meus tios quando eram crianças, disse o impensado: pode ser qualquer galinha, Dona Dondoca! A criatura cor de ébano estava zanzando fora do galinheiro. E foi ela mesma a sacrificada! Minha mãe entrou em desespero! Era a galinha sagrada! Como explicaria para o marido o ocorrido? Minha vó entrou em desespero também. “Essa galinha era separada para viver até morrer de velha! Ela não era uma galinha qualquer! Era da família! Oswaldo vai ficar por conta!”

Minha mãe não cozinhou a galinha, Dona Dondoca, resolveu assumir a culpa por tudo quando meu pai chegasse e ficou aguardando o retorno do patriarca. Ninguém comia, ninguém bebia. Acabaram-se as brincadeiras. O choro agora era pela morte da galinha! Não houve velório nem luto oficial, mas a comoção tomou conta de nós. Incrível: nem comemos!

O barulho do cadeado do portão se abrindo. Meu pai chegara! Ele vinha com seu porte austero e gigantesco de 1,60m. Cumprimentou a todos nós. Viu a Dona Dondoca lá em casa àquela hora e estranhou. O silêncio se fez no ar. Não sei como a notícia foi dita. Ele foi procurar pela criaturinha cor de carvão para lhe oferecer milho picado das suas próprias mãos. Não houve como inventar uma história! Minha mãe assumiu a culpa, mas a Dona Dondoca disse ser a culpada também. Minha avó resolveu criar um enredo para tentar livrar a nora e a vizinha querida da ira oswaldiana. E tudo foi resolvido. Por que eu resolvi contar desse episódio da galinha no meio da narrativa? Foi que meu pai conseguiu ficar tranquilo e não descarregar sua fúria sobre ninguém. O segredo foi a presença abençoada de alguém raro como a Dona Dondoca. Seu jeito simples e suave capaz de frear qualquer impulso violento foi o suficiente para perpetuar a paz naquele lar por mais um dia.

Eu sinto falta dessas pessoas incríveis da minha história de infância. Hoje muitos já descansam para sempre, ou estão bem maduros. Ao longo da vida, fui conhecendo outras pessoas admiráveis e só reconheci o valor delas porque tive os modelos de bem viver e respeitar advindo de tanta gente rara como a Dona Dondoca. Todas foram bênçãos vivas na minha vida. Talvez agora eu seja capaz de entender o porquê do apelido Dondoca. Seus modos eram diferentes. Tinha a suavidade das mulheres ricas incumbidas de receber elegantemente as visitas em suas casas confortabilíssimas mantidas por um marido provedor. Sabem duma coisa? Nem mesmo essas mulheres de classe alta são verdadeiras dondocas. São, junto com nossa personagem título, verdadeiras estrategistas e diplomatas na condução de suas famílias. Lutam com luvas ou com as mãos calejadas. Seus rostos tratados com cosméticos ou castigados pelo sol quente mostram as marcas do sorriso e dos olhares a dizerem tudo sem nenhuma palavra.

 

Dona Dondoca, desenho de Oswaldo Eurico Rodrigues

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7 Comentários

  1. 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻 Amei saber um pouquinho da sua vida por uma meio de um conto de história, engraçado que a maioria das pessoas das antigas, tinham uma vida quase igual a que vc relatou, pelo menos eu tive.
    Carregar lata de água, em morro de terra de chão, ter uma galinha de estimação, ter um pai provedor e de gênio forte e uns vizinhos que deixaram boas lembranças.
    Parabéns Oswaldo, amei!!

  2. Maravilhoso conto. Não poderia ser diferente, o autor tem a têmpera forte dos melhores estetas da palavra. Parabéns pelo texto.

  3. Que lindo desfrute de um texto tão seu, mas tão universal. Parece com minha história sem as cores da África. Com suas palavras, também percorri um longo caminho das memórias da minha infância. Obrigada por compartilhar algo tão de todos nós.

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