Oswaldo Eurico Rodrigues

Chapeuzinho Vermelho na Deep Web

Chapeuzinho Vermelho na Deep Web

A curiosidade faz parte das características humanas. Se a necessidade é a mãe da invenção, a curiosidade é sua tia ou sua avó. Quem nunca viu alguém olhando pela janela o cinema da vida dos outros em exibição na rua? Alguma vez os passos de pés de veludo já levaram alguém a colar o ouvido a sua porta enquanto você conversava reservadamente? Fora esses exemplos de gente alcoviteira, levante a mão quem nunca quis conhecer o rosto de quem dubla os astros dos filmes ou empresta sua voz aos personagens dos desenhos animados. Diga-me se você nunca quis fazer nenhuma pergunta indiscreta, saber qual o salário dum conhecido próspero ou por que o outro é tão pobre?

Deixemos de lado os bisbilhoteiros, comentadores da vida alheia e os indiscretos. Esse povo já vive em pleno pântano emocional infestado de cobras, muriçocas e sanguessugas. Vamos nos ater aos caçadores de imagens inusitadas, alimento de retinas, aos que aspiram os ares de lá e de cá inspirando gente a abrir o peito e fazê-lo crescer. Ouve-se no silêncio, toca-se o imaterial.

Enquanto o nada assustador do bloqueio criativo acontece, deixo o abismo textual e vou procurar outras letras, outros lugares onde passear minhas ideias. Lá, na terra onde meu eu multifacetado encontra o teu tu igualmente plural e chamado por mim de você, está o congraçamento dos íntimos intangíveis, possíveis e impossíveis. É lá que se compartilham com ilustres e confiáveis desconhecidos os nossos anseios. Aparecemos nus e cobertos de máscaras para seduzir sabe-se lá quem. Por sedução, entenda como preferir. A malícia muitas vezes tempera as conversas. É preciso contudo, cuidado para não acabarmos sufocados de ácidos e fel. A doçura pode ser embriagante e estar no extremo do lidar. Como se vê, temperar é difícil. Tão difícil como retomar esse texto parado desde o dia 02 de maio de 2021. Agora, revendo arquivos depois duma dor de cabeça, resolvi acertar minhas contas com o teclado. Muito tempo não tenho escrito nada. No caso particular de “Chapeuzinho Vermelho na Deep Web”, foi por não saber a exata abordagem a ser dada. Como tirar das trevas do esquecimento essa crônica, que deveria se conto?

Tudo começou durante uma aula para uma turma do sexto ano do Ensino Fundamental. O livro didático mostrava uma gravura em metal belíssima, embora de tema triste: a miséria e o abandono infantil. O exercício proposto pelos autores do volume era levar os alunos a uma leitura de imagem. Eles falaram coisas interessantíssimas muito bem guardadas até quando eu decidir compartilhar se me der na telha. Dentre os comentários, um me chamou muito atenção. Um dos meninos online disse que a imagem parecia ser a da Chapeuzinho Vermelho na Deep Web. Nunca poderia imaginar tal coisa. O inusitado (como sempre) me atraiu. Anotei para não esquecer, embora nem fosse preciso. Jamais me esqueceria dessa imagem. O que não conseguia fazer era escrever um texto compartilhável com crianças. Vou confessar uma coisa: amo a molecada, amo ser professor delas, mas não sei escrever para elas. Não sei convidar os meninos a brincar de poesia como o José Paulo Paes. De vez em quando, surgem uns períodos longos, uns desvios nas ideias. A criançada já estaria noutro site, noutro canal. Que iniciem-se os jogos! E o texto é jogado fora!

Sinto-me traidor da turma e, principalmente de quem conseguiu encontrar a menina do capuz vermelho em preto e branco numa gravura antiga sendo alçada do terreno undergroud da Internet. Não citei o nome do rapazinho por questões óbvias do nosso tempo de tantos abusos de menores. Também não citei o Colégio. Um dia, quem sabe isso seja revelado? Os sites de buscas e os blogs se encarregarão disso. Por enquanto segue o anonimato.

Deep Web é lugar de navegação clandestina, sombria, perigosa e assustadora pelo menos para quem está conversando com você agora. Entendo essa camada da internet como um vasto mundo de possibilidades questionáveis. Sou muito medroso e não sei mergulhar em águas tão escuras e densas. Prefiro mares claros onde vejo o fundo. O mistério tem seu encanto nas narrativas. Ficar com uma dúvida por muito tempo pode ser salutar e nos impulsionar a imaginar coisas inimagináveis assim como imaginar o que não se imagina. É nessas horas que as linguagens transformam-se em massas disformes fugidias e imprecisas.  Passamos a puxar as fibras e construir algo com sentido ainda que imediato e já velho em pouquíssimo tempo. Talvez seja o tempo de ver uma mensagem nas redes sociais e lá se foi nosso pequeno porto seguro desmoronando. Os passos de alguém se aproximando fazem a adrenalina quase esguichar. A tensão é grande. Fazer o proibido é dessas coisas a nos trazer medo e prazer ao mesmo tempo. Um mergulho abissal requer um fôlego de todos os ares, pulmões gigantescos. Saber voltar à tona é tarefa ainda mais difícil. A descompressão mal feita é destruição de quem mergulhava e não mais o fará.

No retorno à superfície, eis o compartilhável, o exibível. O lugar do permitido por quem decide no momento o que é universal, familiar segundo critérios não claros, mas ainda assim transparentes quando se enxerga bem. Tudo é tão aparentemente simples e inocente na superfície, mas a radiação infravermelha vai lentamente destruindo a pele e atingindo todo o corpo. Recomendável roupas térmicas de mergulho e filtros, muitos filtros…

Uma parada para um gole d’água da minha garrafa inseparável. Refrescar as ideias é necessário. Já são altas horas e me sinto mal por não estar dormindo. Pareço ouvir a voz dos meus pais ordenando que eu dormisse. Minha avó ficava no quarto conversando conosco e burlando a própria lei do recolhimento infantil logo após o jantar. Essa minha avó morava em outro bairro, mas estava constantemente nos visitando. Não precisávamos levar doces para ela. Se houvesse necessidade disso, o faríamos sem passar por nenhuma floresta. A cidade já começa, naquele tempo, a se transformar num selva de pedra. Os lobos eram outros.

Nunca entendia como caberia num único estômago uma senhora idosa e mais uma garota. Também não entendia como as duas conseguiram passar pela garganta do cachorrão sem serem mordidas. Pior: o suco gástrico lupino não digeriu as duas personagens capazes de ficar comprimidas sem respirar e sem nenhum osso quebrado. O caçador veio logo abrindo a barriga do bicho e salvando duas gerações duma família disfuncional. Isso mesmo: disfuncional! Onde já se viu deixar uma menina sair sozinha de casa rumo a casa da sua avó, cujos parentes a deixaram vivendo sozinha e distante deles? A garota ainda teria de tomar cuidado com o lobo mau solto pelos caminhos. É bem verdade que esses questionamentos vieram com o tempo. Eu tive a infância com a aparente doçura dessas narrativas recontadas de fadas. A maturidade precoce e outras versões vieram aguçar sentidos em mim. Tudo passou a ser mais coerente. Tive oportunidade de ler versões integrais desse conto e de outros tantos traduzidos, porém sem filtros. A capinha vermelha era chamariz para o bem e para o mal. Ela atrai da mesma forma que o conto da menina do chapeuzinho presenteado pela avó. Havia nessa história muita coisa obscura que teve de ser filtrada para que as crianças pudessem ouvi-las no seu estágio de maturidade.

Fui navegar nos textos integrais e nas análises dos mesmos. Minhas memórias permaneceram, revestidas de outros sentidos. Experimentei algo mais profundo, grave… O abismo já existia em torno de lobos, avós, mães, caçadores e meninas com roupas cor de sangue e vida desde sempre.

Itaboraí, 10 de janeiro de 2022

 

Fonte da imagem: Imagem feita pelo autor.

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11 Comentários

  1. Já me peguei pensando em algumas indagações sobre essa história! Me identifiquei bastante. 😀

  2. Amigo, nosso tempo é de narrativas! Li todo o texto, é clássico e bonito, clássico no sentido de altivo. É tão raro um professor escrever. É tão raro desejar escrever! Neste tempo de narrativas e imagens. Tanto, que durante o texto, imaginei as figuras, elas dariam o colorido para os olhos. E é assim que estamos vivendo. Eis o nosso tempo!
    Eu não tive o mesmo processo de leitura infantil. Não havia ninguém para me contar histórias, nem fadas, nem lobos ou princesas. Aos sete anos ganhei uma coleção dos contos de Andersen e fui lendo A PEQUENA SEREIA, O GUARDADOR DE PORCOS, A MENINA DOS FÓSFOROS, O ANJO, A ROUPA NOVA DO IMPERADOR, O COMPANHEIRO DE VIAGEM. E em Andersen, o mundo é mundo, sem fadas, sem bailes, sem sonhos. No “Guardador de Porcos” o príncipe é pobre, vingativo e maquiavélico, mas “digno‽”. Ele deseja casar-se com a filha do imperador e envia-lhe presentes. Que para ele são tesouros inigualáñveis: uma rosa cujo perfume aniquila toda tristeza e um pássaro que canta canções diferentes a cada manhã. Mas a princesa desdenha dos presentes por não serem artificiais. Então, o príncipe se disfarça de porqueiro e vai trabalhar para o imperador. Vai logo inventando brinquedos para agradar a princesa, mas sempre em troca de beijos. Até que o imperador flagra a situação e expulsa a princesa e o porqueiro. Do lado de fora do palácio, a princesa se arrepender de não ter aceito o pedido de casamento do príncipe. É quando o porqueiro troca seus andrajos pelas roupas reais e tira a tinta parda do rosto e aparece belo e majestoso. Ela contente faz uma reverência. E ele diz: “Vim apenas para desprezá-la. ” kkkk. Em Andersem o mundo é mundo! Quando eu contava esta história para os meus alunos, o inusitado, a surpresa eram o gancho contrário ao comum do “mundo maravilhoso da Disney “.

    1. Olá, Ivanise!

      Que comentário precioso o seu! Vou guardá-lo comigo.
      Obrigado e grande abraço…

  3. Texto original, muito bem escrito, repleto de imagens que nos transportam à nossa infância.
    Há uma mistura de emoções e sentimentos entre a ficção e a realidade, mas principalmente uma interacção entre o autor e o público leitor nas diversas abordagens de uma historia que nos foi contada sem “filtros”.
    Afinal o mundo em que vivemos é formado por fortes e fracos numa selva repleta de lobos maus querendo devorar os inocentes “capuchinhos vermelhos”…

    1. Manuela,
      como seu comentário é precioso para mim.
      Grande abraço e obrigado pela leitura.

  4. Que texto!!! Reflexivo e inteligente, buscando na intertextualidade e na metalinguagem a grande discussão do fazer literário e das experiências de um leitor/escritor! Parabéns pelo texto, um belo exercício de escrita!!??????????????

    1. Seu comentário me estimula escrever mais.
      Grande abraço e obrigado pela leitura.

  5. Parabéns pelo maravilhoso texto!É uma sábia e atual reflexão do conto infantil Chapeuzinho Vermelho!

    1. Olá, Ana Paula!
      Obrigado pelo comentário. Ele é de grande valia para mim,
      Abraço…

  6. Bela,sábia e atual reflexão sobre o conto infantil Chapeuzinho Vermelho!Parabéns pelo maravilhoso texto!

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