Oswaldo Eurico Rodrigues

Uma tarde na biblioteca, uma manhã na aula virtual e uma noite na minha sala.

 

 

Procurar documentos é uma verdadeira aventura. Expedições ao interior do armário e mergulhos nas gavetas pode trazer à tona incríveis descobertas do que já fizemos e deixamos sepultado no limbo dos lugares de onde se guardam as coisas importantes duma época. Sofremos dalguma incapacidade de destruir anotações, recados, cartões de visita de profissionais não mais prestadores do serviço tão caro a nós no momento e outros tantos papéis e fotografias. Os arquivos existem desde quando não tenho a menor ideia. E o tempo do qual não ouso fazer nenhuma afirmativa existe desde quando se imagina existir. Como aprendi a valorizar a palavra escrita no suporte chamado papel, atrevidamente, quero pensar nos primeiros registros nesse material de celulose, trapo, pergaminho ou papiro. Antes disso, é especulação da minha parte. O conforto e a nostalgia do livro arrumam a minha história da História nada oficial, mas sinceramente confortável e forjada. Aliás, história de histórias servem de documento para a História. O que encontrei numa pasta por detrás dum documento procurado foi um texto manuscrito feito por mim durante uma aula na biblioteca para uma turma do 8º ano do Colégio Estadual Francesca Carey. Ver aqueles jovens me fez viajar no tempo para um lugar sem computadores e sem contatos virtuais. Esse foi o tempo onde mora a minha antiga infância. A criança ficou brincando entre as estantes enquanto o jovem e o adulto foram trabalhar. Eu olhei para a turma e ouvi mentalmente o menino Oswaldo insistindo para eu escrever o texto a tomar corpo no segundo parágrafo.

Eu nasci num lugar quente. Sempre quis ver a neve de perto, fazer bolotas e atirá-las na cabeça dos meus amigos. Esperava ansiosamente pelo Natal na minha casa sem chaminé, sem lareira, sem bom velhinho num país ao Sul do Equador sem renas, sem duendes. O menino queria o frio, queria os tombos nos campos gelados.

O homem cresceu. Foi trabalhar. Conheceu alguns lugares, mas nunca tocou a neve. Nunca esquiou. Nunca fez bonecos com nariz de cenoura. Hoje está chovendo. Granizo? Não! Chuva mesmo. De primavera brasileira. Aquela estação quase verão ainda com alguns recalques de inverno e ensaios de grande sol. Era uma chuva que lavava o cenário sem alagar o palco. Não abri o guarda-chuva! Fui viajando com as lentes lavadas de sangue de nuvens que davam vida às buganvílias do caminho. Passei debaixo de um pé de flamboiã. A África acenava para mim. Seria Indonésia? Não! Não era!

O caminho de árvores únicas de cerrado e Mata Atlântica me levavam para um lugar único: São José. Esse lugar me inspira! Cheguei ao colégio onde encontro alunos únicos, gente de um sorriso único dos que ainda não chegavam aos vinte anos. Eu levei uma atividade escrita para eles fazerem. Fomos à sala de leitura. Prontamente um aluno me mostrou um livro que ganhara da sua mãe. Era sobre Ghotan City, a cidade do Batman, mas na capa estava estampada o Coringa. Às vezes, uma pitada de sarcasmo de um personagem soturno nos aponta o excesso de açúcar das relações excessivamente pálidas. A vida tem sua acidez e seu amargor. Já contava Djavan “do pé que brotou Maria nem Margarida nasceu…” Era outro aluno com violão cantando e tocando do compositor das Alagoas com seu Oceano de poesia.

Você que me lê não está aqui vendo essas moças escrevendo e cantando ao som do violão. As cordas não param. As mãos também não e eu termino de escrever enquanto observo aos meus alunos produzindo. As teias de histórias são lançadas. Vou me prender a elas.

E a rede me prendeu. Encontro meus alunos, nestes dias, através duma tela de computador. No princípio, senti-me inseguro. Agora estou mais à vontade. Graças a essa disposição favorável, permito-me sentir a voz desses contadores de causos e verdadeiros cientistas mirins interlocutores meus. Ouvi tantas histórias e tantas observações sobre a nossa língua que nem sei. Uma das alunas me perguntou sobre a biblioteca do Colégio Adventista de Itaboraí. Ela é nova na escola. Fiquei radiante. Quem sabe não transmitirei uma aula direto da biblioteca da escola? Certamente, um outro texto surgirá sobre a experiência. Por enquanto posso dizer para você da minha alegria de saber que ganhei turmas incríveis e desafiadoras desde a primeira até a atual.

Neste momento, digito para você com o equipamento no colo. Ao lado, um livro do Erick Bernardes, o Cambada: crônicas de papa-goiabas. São narrativas preciosas da cidade de São Gonçalo, um inventário do município fluminense do fundo da Baía da Guanabara. Ele faz parte das preciosidades da minha biblioteca física sem sede própria. Sou apegado a esse lugar santuário de livros. Mesmo espalhando meus textos aos ventos da internet, sou profundo amante da palavra impressa. Espero um dia te encontrar e ter o prazer de olhar para você olhos nos olhos sem vírus turbadores de ideias e sentimentos. Enquanto isso não acontece, é bom imaginar você lendo a mim e (melhor) lendo aos anteriores ao Oswaldo e posteriores a esses parágrafos. Quem sabe, você deixe um comentário e eu resolva comentar as suas observações. E assim meus textos vão aparecendo. Espero não vê-los desaparecer. Se, todavia, minhas palavras voarem para muito longe, espero um dia recuperá-las. Se eu não fizer isso, faça-o você. Quem sabe não surge um bate-papo gostoso num café de uma livraria ou você pode conversar com um amigo na varanda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro ou no jardim no fundo dela, lugar pouco conhecido da maioria das pessoas. Será como encontrar aquele livrinho minúsculo perdido atrás das grandes e pesadas coleções de clássicos. Geralmente é um grande achado como esse texto pequeno que transcrevi para você do segundo ao quinto parágrafo, pois os verdadeiros tesouros são aqueles a tocar nosso coração.

Itaboraí, 11 e 12 de fevereiro de 2021 envolvendo (literalmente) um texto do início de dezembro de 2019 encontrado entre os guardados do Oswaldo Eurico

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2 Comentários

  1. Uma alegria ímpar ser referido como escritor por esse artista magistral que é o Oswaldo. Um dos melhores cronistas que conheço. Texto maravilhoso, como sempre, típico do artista plástico a moldar o discurso literário.

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