O bonde de Niterói e o acidente inaugural
Série: Histórias de Arariboia
Não, não é fácil escrever reminiscências. É penoso martelar lembranças, reconstruir memórias como se fossem casinhas de pau-a-pique sem estruturas seguras, onde o narrador pudesse se abrigar e recontar trajetórias. Voam lascas e poeiras de outros tempos, corre-se o risco de que algum fragmento de história ainda não contada se misture ao barro sobre o qual pisamos a vida inteira. Necessário ficar atento, ouvidos e olhos aguçados ao interlocutor. Tentar manter as mãos firmes e os dedos duros para apalpar o invisível no solo inseguro da vida de outrem. E vamos ao trabalho, falemos sobre o primeiro acidente de bonde em Niterói.
Acordei com a mensagem de WhatsApp do amigo professor Oswaldo no celular. Não se tratava de mensagem qualquer. História linda, inédita pra mim, longa e preciosa, mas carente de publicação. “Posso escrever e publicar, Oswaldo?” Necessário pedir autorização. Palavras sopram brisas que nem sempre revelam refrescância, por vezes também sufocam, oprimem o coração.
O caso foi assim: Oswaldo narrou que descende de uma família niteroiense. Seus antepassados teriam imigrado na época do Império, no intuito de prestar serviços à Coroa portuguesa no Brasil. Um dos seus antepassados, talvez a quarta ou quinta geração dos Soares nascida aqui, se lançou na empreitada de projeção da Cantareira. A família desses trabalhadores constituiu, portando, a matriz genética do meu amigo professor.
— Erick, peraí que já volto para lhe dar mais informação.
Necessário aguardar, história de vida, narrativa inédita sobre os bondes da Cantareira em Niterói. Oswaldo voltou, mas agora com mensagens em áudio. E foi assim que tudo começou:
— Bem, meu caro Erick, tudo começa com a história de uma mulher daquela época. Essa senhora se chamava Dona Inês. Ela era amiga de infância da minha avó Laura. Eu compartilhei contigo porque ela foi a primeira pessoa a se acidentar num atropelamento de bonde em Niterói, cidade onde nasceu e viveu a vida inteira. Guarde bem o nome, Dona Inês, amiga da vovó. Como fora uma criança muito arteira, essa senhora tropeçou na linha do bonde e o veículo passou por cima da mão direta dela, coitada! Prejudicou as articulações, danificou falanges, metacarpo também. Por causa disso, Dona Inês só posava nas fotos com a mão enfiada no bolso. Cheguei a visitá-la no Morro de São Lourenço, no final da vida dela, a fim de notificá-la sobre a morte da minha avó. Por essa ocasião, já se encontrava cega e só me conheceu através do apalpar do meu rosto. Recordo dessa emoção, afeto, sentimentos, sensações muito fortes para um garoto de 19 anos.
Bem, está claro que o meu narrador se emocionou de novo durante o relato, claro que sim. Ao tentar disfarçar o embargo da voz em meio à gravação, ele não me enganou. Impossível não notar. Decerto chorou durante a explicação histórica. Instabilidades sonoras no áudio do celular, sim, lógico que percebi, emotivo no falar.
— Você me permite publicar essa pérola de narrativa, Oswaldo?
— Claro, Erick! Está autorizadíssimo! Vou lhe dar mais uma informação: a família que adotou a vovó Laura tinha, entre seus membros, um projetista da antiga empresa da Cantareira. Isso aí, infelizmente as informações precisas se perderam nas areias do tempo. Com a morte do meu pai, queimou-se uma biblioteca viva. Papai sabia muito. Ainda tinha esperança de reconstituição com a ajuda do Tio Orico, que você conheceu, mas foi mais outro a partir. Enfim… A história da minha família está se esvaindo. Restam-me agora somente memória das conversas com meu pai, minha avó e minha madrinha, que morreu aos 102 e conheceu o Rei Alberto, da Bélgica (de longe, no meio da multidão), era descendente de uma das aias de Catarina, a Grande, da Rússia. Temos histórias. Inclusive, o Parque das Águas em Niterói já foi o “quintal” da minha avó. Diziam que vovô era responsável por medir o tamanho da caixa d’água. Mas isso é assunto pra outra hora. Abraço, querido.
Eis uma importante e inédita narrativa para guardar com zelo. É conversa para 100km de extensão. Sinto-me na obrigação de registrar isso, pois o meu amigo Oswaldo e também você, caro leitor, merecem esse carinho. Até breve.
É muito gratificante para mim, ver um pouco da minha família num texto tão bem escrito como essa crônica. Não sou niteroiense, mas tenho grande afeto por essa cidade, onde nasceram meus avós, meu pai e meus tios. É interessante olhar para a cidade e imaginar que um dia meus antepassados andaram por ali. A leitura traz essa sensação de maneira ainda mais marcante, pois esse sentir da crônica é eternizado nas palavras do autor e revivido e ressignificado a cada nova leitura.
Tomei o texto como um presente.