Ze Arnaldo

Com carinho

Como todo o mundo, tive professores com os quais estabeleci relações de afeto em três níveis: os mestres de que gostava, aqueles com os quais não tinha nenhuma afinidade e os que temia. Gostar ou não de um professor sempre teve a ver com um sentimento adjacente, o medo. Havia professores que nos atemorizavam, pois tinham voz ameaçadora, ou olhavam pra gente como se tivessem o poder de nos ver por dentro. Encaravam-nos como quem estivesse dando uma busca em nosso cérebro, sem mandado, para arrancar de lá das entranhas nossos pecados escondidos.

Tive alguns e algumas assim.

Uma, um dia, surgiu do nada – professores têm o poder da invisibilidade e o da ubiquidade –, me parou no corredor e inquiriu, já sabendo a resposta:

– Matando aula, menino? Já pra coordenação!

Não pude nem reagir. Ato contínuo, um inspetor deu-me voz de prisão: pegou-me pelos colarinhos e me arrastou até a delegacia colegial, a sala da direção. Fui interrogado por horas – talvez tivessem sido só minutos -, até que uma voz me salvou do pau de arara iminente:

– Ele tava na quadra, comigo, me ajudando a guardar os materiais da atividade.

Era o professor de educação física, que mentia para salvar a pele do seu craque. Olhei-o interrogativo e agradecido. No corredor veio o preço:

– Sábado quero você aqui às sete!

Eu tinha dito ao truculento docente que não poderia jogar pelo time da escola no sábado porque teria outros afazeres; o principal deles, isto eu não disse: dormir até meio-dia! Depois dessa, tive que me resignar e comparecer, sonolento e de má vontade, para jogar contra o time de outro colégio, do qual, aliás, ganhamos sem nenhuma dificuldade, com três gols meus.

Uma professora me torturou por anos a fio, insistindo em que fosse à frente para ler frases em francês. Morria de vergonha, mas ela se divertia com as minhas infrutíferas e ridículas tentativas de pronunciar como ela queria o “u” dos gauleses. Um outro, percebendo meu asco, exigiu que eu fosse o primeiro a cortar a barriga da rã defunta que aguardava, com sua aparência aterrorizada e súplice, dentro de um vidro, o dilaceramento do seu corpinho magrelo e gelado. Ele dizia que aquilo me formaria para a vida, mas não percebi até agora no que aquilo me ajudou.

Houve, porém, um sem-número de mestres que me marcaram para sempre. Não perdia as aulas de inglês, no ginásio, porque a professora era linda e usava saias curtíssimas, para a época, provocando o meu ciúme e o deleite da galera do fundão, que se mudava em bloco, para a primeira fila, quando era aula dela. Além do mais, seus vestidos tinham alças circenses, que pareciam prestes a escorregar de seu ombro, numa vertigem sem fim, deixando à mostra seu dorso escultural.

Um, de História, fedia aos cigarros que fumava nos intervalos e usava um blusão jeans, sempre o mesmo, sobre uma camiseta branca, mesmo no verão. Eu adorava as histórias que ele contava, principalmente se fossem sobre batalhas, deuses do Olimpo, reis e rainhas. O professor, às vezes, esquecia trechos da narrativa, emendava pedaços de uma história na outra, a maioria dos alunos se perdia e perdia o interesse, mas eu continuava firme, esperando que ele retomasse o fio da meada. O cara contava com tanta paixão e conhecimento de causa os fatos históricos que, para a molecada da minha turma, por inocência ou galhofa, ele os tinha testemunhado de pertinho.

O de português não ensinava nada de gramática. Só lia para a gente uns livros que ele devia adorar. Lia, lia, ria, lia, comentava, suspirava, se emocionava, olhava para o alto, fazia conjecturas sobre o autor e sobre o trecho que acabara de ler, e voltava à leitura, nem aí pra nós, que já estávamos em outras viagens. Tínhamos de avisá-lo de que o sinal tocara e que o tempo de aula tinha terminado. Ele, surpreso, dizia?

– Já acabou?

E recolhia suas coisas – maço de cigarros, isqueiro, molho de chaves, papéis, diário de classe, outros livros -, com enfado, enfiava tudo de qualquer maneira na pasta indefectível que o acompanhava, e saía, prometendo:

– Na próxima aula a gente continua a leitura.

Só que na aula seguinte ele vinha com outro livro. E começava nova ladainha da qual nunca saberíamos o fim.

Tornei-me próximo de alguns professores. Procurava-os nos intervalos, para lhes fazer perguntas que eu achava inteligentes, mais para mostrar que eu prestara atenção na aula do que para saber as respostas. Alguns me acolhiam, davam-me atenção, conversavam comigo, sugeriam leituras. Esses foram os que se tornaram amigos; outros, porém, me enxotavam curta e peremptoriamente.

Os que me acolhiam sugeriam leituras, filmes, peças de teatro, viagens; contavam-me suas vidas, falavam de seus filhos, dos lugares que tinham conhecido, dos estudos que os tornaram mestres. Me lembro de um que, para meu espanto, me disse estar escrevendo um livro. Um livro! Outro professor, no ensino médio, surpreendeu-me, num evento da escola, tocando lindamente piano. Piano! E havia a velhíssima professora de literatura que, copiou, ao lado de um poema de Manuel Bandeira, um poema lindo, também, mas anônimo. No fim da aula, fui até ela:

– Professora, a senhora não escreveu o nome do autor de um dos textos.

– Autora, ela respondeu. Fui eu que escrevi! Mas não conta pra ninguém. E piscou um olho para mim.

No fim da aula seguinte, morto de vergonha, entreguei-lhe, numa folha de caderno, uma poesia minha. Enquanto lia, ela sorria, balançava a cabeça em aprovação. Ao final, declarou:

– Vejam só, você também é poeta!

Tornamo-nos cúmplices, pois guardávamos segredos reciprocamente.

Dali pra frente, passamos a trocar poemas, como quem troca cartas. Eu lia os dela cheio de admiração, mesmo que, às vezes, não entendesse algumas partes. Ela corrigia os meus, me incentivava a escrever mais, e me emprestava livros de poesia. Me apresentou Mário Quintana, João Cabral, Adélia Prado, Cecília Meireles, Augusto Frederico Schimdt, Ferreira Gullar…

Meus professores, os bons e os ruins, me ensinaram muito, mesmo quando não pretendiam fazer isso. Aprendi a amar os livros, mas sei até hoje os nomes dos afluentes da margem esquerda do rio Amazonas; aprendi a olhar o tempo e a esperar a minha vez, e, também, equação do segundo grau e o teorema de Pitágoras; aprendi a respeitar o próximo, as valências do carbono e as divisões celulares; aprendi a não temer a morte, a crer em mim mesmo, mais que em Deus, e que a Terra gira em torno do sol.

Acho, enfim, que aprendi com meus professores e professoras sobre a vida, tanto quanto sobre os conteúdos que tentavam, muitas vezes em vão, nos ensinar. No coração, guardo passagens, histórias e exemplos que contribuíram para ser o que me tornei. A maior lição que aprendi com eles? Que, mesmo sem saber, estamos sempre aprendendo.

Link da foto em destaque: https://pixabay.com/pt/vectors/professora-silhueta-preto-isolado-309533/

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