Ilha de Mocanguê e o tostar das carnes
Série: Histórias de Arariboia (Texto VII)
A primeira coisa que guardei na memória, quando atravessei a ponte, foi aquela ilha bem cuidada, cheia de árvores podadas, casernas pintadas e cal dando leveza aos rodapés e estradinhas asfaltadas com marujos na entrada. Ignoro o ano, quando prestei atenção enxerguei — e eu nem sabia que aquela ilha bonita ainda possuía nome indígena, ela já pertencia à Marinha do Brasil. Pois é, Ilha de Mocanguê (mocaè + gué), em língua Tupi significa grelha de tostar.
De acordo com Luís A. Pimentel, o substantivo Mocanguê servia para designar “moquéns, varais ou tendais sobre o braseiro para assar carne ou peixe” (p. 19, 1988). Sim, um tipo de grade de torrar animais. Impossível a mente da gente não fazer logo alusão aos coitados dos marinheiros tostando ali ao sol inclemente, não é?
Não sei, talvez eu mesmo não me recorde integralmente da ilha niteroiense propriamente dita. É possível que a imagem dos marinheiros perfeitamente trajados e expostos ao sol tenha me impressionado mais, muito mais: sapatos lustrados, posição de “sentido”, continências para cá e para lá. Pois bem, os movimentos das pessoas, o cuidado com o espaço, o calor da Ponte Presidente Costa e Silva (apelidada de Rio-Niterói), isso sim me impressionara de fato. Eu era criança, imaginação fértil, mente pululando com fins de descobrir as coisas. Agora, posso garantir que o significado da ilha retornou de súbito, e sabe o motivo? Isso mesmo, acertou, passei novamente de ônibus na frente do espaço insular da marinha. Mas… desta vez foi pior, recordei mesmo do real significado do nome por causa do raio solar atravessando a maldita janela sem vidro fumê e o inferno do ar condicionado veicular quebrado. Exato, caro leitor, no interior do coletivo a carne tostando ao sol era a minha, e outros passageiros sobremaneira suados, todos indo para o outro lado da Guanabara: parecíamos animais cozinhando, bem pertinho da base naval da Ilha de Mocanguê.
Se a minha tataravó indígena estiver no céu neste momento e zelando por mim, na certa estará revoltada porque inverteram os papéis. Deveríamos ser nós, os fluminenses tirando proveito das coisas, nutrir nossos corpos com as proteínas dos animais nativos tostados nos moquéns primitivos. Seria sofrimento de animal só para alimentação. Nada de exploração. Mas não, infelizmente não é assim, novamente o colonizador extrai dos nativos o excedente de riqueza. O empresário já possui centenas de veículos automotores que me cobram caro com fins de queimar as carnes dos passageiros engaiolados nos ônibus capengas. Capitalismo selvagem, espólio do povo, decerto.
Pois é, a raça nativa que reside em mim proveniente dos meus antepassados não é mais a mesma, a fome também não, se tenho 15 por cento de sangue Tamoio ou Temiminó é muito. Um pacote de pipoca doce, uma lata de refrigerante e o ônibus andando rápido já me enganam direitinho. Por fim, ao menos a memória me resta, reminiscências da Ilha de Mocanguê, recordações de outrora. Pronto, chegamos. E toma-lhe calor. Tchau, pessoal!
Referência: PIMENTEL, Luís Antônio. Topônimos Tupis de Niterói. 2.ed. – Niterói: RJ, Editora Icaraí, 1988.