Valdeci Santana

Torrões da terra e do saber

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Torrões da terra e do saber.

Nasci de um útero que suportou quantas gestações lhe foram possíveis, seu doutô. Caí num solo seco e castigoso, onde somente nascem as tristezas. Aprendia a manobrar a enxada antes mesmo da precisão do garfo.

Também fiz minha parte, seu doutô!

Tratei de semear a terra com meus grãos da vida, que vingaram e se esparramaram pelas bandas, como se esparramam as ramas pela terra. Porém, um insistiu ficar. O derradeiro morador do útero de minha senhora.

O menino tinha estranheza, seu doutô! Nem parecia gente daqui. Parecia um estrangeiro inquieto e perguntador.

Disposição para o eito até que tinha, mas, via-se que lavrar a terra não era sua melhor faculdade. O pobre se distraia com suas sabenças e seus sonhos.

Não é bom sonhar demais, seu doutô! É acordado que se vive. O sonho é a janela por onde espia a esperança e a decepção. Pelo menos, foi assim que aprendi.

O menino era fuçador. Inquiria a razão de tudo. E quando encontrava, guardava na cabeça e não mais esquecia. Eu tinha medo de que o menino danificasse seus miolos com tanta informação, seu doutô. Cabeça cheia demais endoidece a gente. Mas, o menino era teimoso. Contrarioso como somente os teimosos sabem ser.

Um dia, ele me apresentou no chão do terreiro, letras rabiscadas, como sendo meu nome.

João!

Que belezura, seu doutô! Não é que o menino tinha jeito para escrevinhar.

Meu nome ali, como a chuva, no coração da terra, com uma letra que parecia um anzol, outra igual uma casinha encimada por uma nuvem, espremida entre duas barrigudinhas. Sou ignorante das letras por nascença, seu doutô. Por isso fiquei admirado. Escrever palavras, saber arrumar as letras no seu devido lugar, é coisa bonita demais. Saber compreendê-las então é tarefa de gente sabida.

O menino dava mais atenção aos livros do que para a enxada, seu doutô. Noi foi fácil aceitar. Livros não geram frutos. Livros enchem a cabeça, mas, e quanto a barriga?

Mas, tem gente que parece nascer para os livros, seu doutô. Estes trabalham na sombra, escrevem leis, guiam o país. Então enfiei o menino no colégio, seu doutô. Parece que nossa casa ficou pequena para o pobre. Ele queria respostas. E nós não tínhamos e quando tínhamos não lhes eram suficientes. Quem prova do saber não se satisfaz seu doutô. A barriga se enche e se aquieta, mas, a cabeça é um buraco sem fundo.

Sofri mais ainda no cabo da enxada, para lhe pagar os estudos. Os torrões da terra são duros, seu doutô, mas, também são duros os caminhos do saber. E também não se abalou. Debruço sobre os livros dia e noites. Desempregou a enxada, mas, empregou os olhos e o cérebro com urgências e ganância.

Tempos difíceis, seu doutô, mas, hoje aquele menino não cultiva a terra com as próprias mãos. Tem seus empregados para tal. O menino já foi nas europas, seu doutô. É respeitado e imitado. O menino é doutô, seu doutô. Salvador de vidas. Por isso, esteja sossegado, seu doutô, pois, o parente a quem o sinhô espera, está sendo operado pelas mãos de um homem conhecedor dos livros e das doenças. É meu menino, seu doutô.

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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