Ze Arnaldo

Vocativo

VOCATIVO

O garoto me pegou distraído enquanto eu olhava o celular:

– Padrinho, pode me dar dois reais pra eu comprar um pão?

Penalizado, dei-lhe aquelas moedas que trago no bolso sei lá pra quê. Ele, rapidamente, escondeu-as no short surrado e continuou a sua cruzada entre os passantes. Tentava tornar-se visível para um deles, acordar mais um de nós do sono profundo em que estamos todos.

Segui-o com os olhos e o vi abordar uma senhora que vinha em sentido contrário, como fizera comigo. Percebi, em sua abordagem, a mesma rapidez e o mesmo gesto de súplica e subalternidade que se manifestavam na mesma atitude corporal, no mesmo tom da fala e no mesmo olhar desesperançado com que me machucara segundos antes.

Não, fique tranquila, cara leitora, não vou falar dos inúmeros abandonados e desvalidos que vagam pelas nossas ruas, atrás de uns trocados, ou dos nossos restos, para matar a fome. Isso fica pra outro papo. Meu interesse aqui é a língua e seus usos sociais.

O que me chamou também atenção foi a escolha perfeita do vocativo feita pelo menino. Ao ser chamado por ele de “padrinho”, estabeleceu-se entre nós um instantâneo e estranho parentesco social que me obrigava a cumprir a minha parte no trato: precisava ajudá-lo de alguma maneira, cuidar dele, ampará-lo.

Sem solução para as mazelas sociais em que estamos todos enfiados, até o pescoço, agarrei-me à palavra, sobre a qual sei um pouco mais. 

É notável o quanto nos dizem, ou dizem por nós, os vocativos que usamos, consciente ou inconscientemente, em nossas interações comunicativas. Cada uma dessas escolhas nos coloca num lugar nas conversas diárias e nos põe num papel – superior ou inferior – na situação social, conforme o status que estabelece.

Um “mermão” pressupõe entre os interlocutores igualdade e, até, alguma cumplicidade. Um “senhor” eleva o indivíduo ao qual é dirigido a um patamar acima daquele que proferiu o vocativo, enquanto o “você” iguala instantaneamente os debatedores. É fato que que ao ouvir do flanelinha “Deixa solto, patrão!”, temos que ser condizentes com a nomeação e remunerar o rapaz que regeu a nossa manobra.

Foi um vocativo que me denunciou a mim mesmo a idade, quando ouvi de uns meninos que jogavam uma pelada numa rua perto de casa, já há algum tempo, a dilacerante frase: “Ei, coroa, chuta essa bola pra mim”. Olhei em volta e percebi que o “coroa” a quem se pedia a bola era eu.

Um “princesa” dito com voz apaixonada para o alvo de uma conquista amorosa pode abrir os caminhos para o palácio dos prazeres, assim como um “minha santa” atirado no momento certo na direção da “dona patroa” pode ser capaz de nos livrar do inferno matrimonial e nos levar ao paraíso. 

Nada melhor do que um “meu amigo”, se o que se quer é ser bem tratado por alguém a quem se vai pedir algo. É também um bom começo iniciar conversa com algum desconhecido com um “meu parceiro” ou um “querido”. 

Por outro lado, é péssimo convocar alguém por um “psiu” ou por um “ei, você aí!”. Não recomendo, em hipótese alguma, dirigir-se a alguém de mais idade com um “ei, velhote”. Prefira sempre um “meu senhor”, que é mais respeitoso e elegante.

Alguns vocativos são genéricos e sem cor, como “moço/moça”, “garçom/garçonete”, “motorista”: servem apenar para chamar. Já um “campeão” proferido com inferioridade ao cara do balcão pode ter como prêmio um atendimento vip ou, pelo menos, um chopinho tirado no capricho. Um “companheiro” ou um “camarada” certamente cooptam o ouvinte, mas um “garoto” rebaixa o rapaz que honestamente ganha o pão vendendo balas no trem. 

A escolha do menino em seu apelo, que me suscitou essas reflexões linguístico-sociais, me deu a exata dimensão de quem sou diante das crianças desamparadas que perambulam maltrapilhas e famintas pelas ruas da minha cidade. Não pude fechar os olhos para ele, porque fui investido da função que a palavra padrinho carrega. Tive de, pelo menos naquele momento, acolhê-lo, apadrinhá-lo. 

O vocativo desferido contra mim de supetão pelo garoto abriu meus olhos para a enorme responsabilidade que tenho e para o poder da palavra. E me levou à conclusão de que a língua, dadivosa, é rica até para os mais pobres.

Link da foto: https://www.pexels.com/pt-br/foto/criancas-brincando-na-rua-2775536/

grátis Crianças Brincando Na Rua Foto profissional

Mostrar mais

Artigos relacionados

2 Comentários

  1. Meu amigo, como eu nunca parei pra pensar sobre isso dessa forma!? Realmente, a maneira como chamamos alguém vai ditar ou tendenciar o comportamento de volta. Embora isso já tenha sido enfatizado nos meus estudos de marketing, os quais dizem que devo escolher um apelido para meu público, você colocou de uma forma muito mais cotidiana e analítica. Sempre aprendo com vc! Obrigada

  2. Pô, tiu, já tinha lido essa no seu livro “Atemporais”.

    Aliás, recomendo de olhos fechados. Quer dizer, é esquisito recomendar livro de olhos fechados, agora que eu vi, mas acho que dá pra entender… Recomendo, enfim, ó: https://shre.ink/rcO1.

    Depois que li essa crônica, comecei a reparar em como me chamam quando querem me pedir alguma coisa na rua. De fato, apareceu um cara me chamando de padrinho. Só que eu disse a ele que sou um péssimo padrinho até pras minhas afilhadas de verdade, quanto mais pra afilhado que eu nem sabia que tinha.

    Aí o cara foi embora me chamando disso e daquilo. Deve ter pensado que eu estava zoando com a cara dele.

    Só que não. 🙁

Botão Voltar ao topo