Erick BernardesHISTÓRIAS DE ARARIBOIA

Baldeador e o professor cambaleante de Niterói, por Erick Bernardes

Baldeador e o professor cambaleante de Niterói, por Erick Bernardes

Série: Histórias de Arariboia

Fonte da foto: http://jaimemuller.blogspot.com/2010/03/bondes-e-empresas-de-onibus-de-porto.html?m=1

A justeza na composição e a credibilidade da construção do narrador como sujeito sabedor do que diz é o que corrobora a legitimidade da crônica. O sentir e o agir de quem narra e o que nos oferece em escrita histórica é de fato alicerce relevante e fundamental como critério de qualidade narrativa. Porém, eis a pergunta: e quando se começa um texto menosprezando o personagem narrador devido ao grau de bebedeira no qual ele se encontra e, ao fim e ao cabo, certifica-se ser ele um sujeito triste e cujo passado constituiu renomado pesquisador?

O caso chegou via relato desse professor de História em crise existencial e, por isso mesmo, ébrio até a alma. Incrível é o poder do acaso a girar novamente a máquina do improvável. E assim conheci o relato do historiador em estado etílico, o senhor Martins, cuja disposição de narrar nos revelou a origem da localidade Baldeador.

Eu falava ao telefone:

— Alô, mãe, vim na casa do Marcelo buscar os livros de que lhe falei. Aqui é o Baldeador, mas na lista de bairros de Niterói, esse nome não aparece como bairro.

Bem, tão logo liguei para minha genitora com fins de não deixá-la preocupada, notei um homem maltrapilho e de olhos embaçados a me observar. Ele sorriu de lado e então lançou a pérola, era o professor alcoolizado, claro:

— Você não achou na lista porque o Baldeador é uma confusão no que concerne a delimitações. É um lugar bastante problemático de registro para se apontar no mapa. Conheço bem a história, me chamam de Martins, sou historiador.

Pois é, caro leitor, é óbvio que o caso me provocou estranheza. Medo, preconceito, sei lá, um bêbado ostentando ares acadêmicos. Mas foi ele quem me elucidou sobre essa região pertencente atualmente às terras de Arariboia.

De acordo com o professor embriagado, a localidade Baldeador outrora serviu de paragem de descanso, troca de carga e descarga de mercadorias trazidas por tropeiros a Niterói e São Gonçalo. Ao mercador ou caixeiro viajante, a necessidade de baldeação entre mulas, bois e cavalos de tropa, com vistas ao abastecimento e reabastecimento de mercadorias, foi o que motivou, inicialmente, o apelido do espaço; doravante nomeado Baldeador. Isso se deu até o começo do século XX, quando se plantava café, cana-de-açúcar e milho também. Exporta-se aos montes esses e outros produtos. De São Gonçalo e Itaboraí vinham laranjas, limões e cachaça da boa e lá faziam baldeação.

Certo é que o prof. Martins lambeu os beiços quando citou a cachaça fluminense amplamente exportada. E continuou afirmando que, embora tenha se arrastado até o séc. XX, a decadência da região do Baldeador decidiu mostrar suas garras já no meado do século XIX, agravando sobremaneira a falência mercantil dos postos de intercâmbio e também armazéns, após a abolição da escravatura. Além, é claro, da superimportância dada ao Vale do Paraíba no quesito mercado cafeeiro, diminuindo o fluxo mercantil de Niterói e adjacências.

— Caramba, Martins, quanta história. E por qual motivo falaram de dois Baldeadores aqui nesse site, oh! Vê aqui, um é de cima e outro da parte baixa?

— Ah, sim, há isso também. É que a coisa é meio complexa, crise existencial de topônimo. Embora pareça piada, o caso causa é confusão. Houve um tempo cuja geografia desse lugar niteroiense abraçava também outras paragens. Passava do Caramujo a Santa Bárbara e atravessa a Estrada Velha de Maricá. A Rodovia Amaral Peixoto teve lá sua importância na divisão desses dois Baldeadores sobre os quais você se referiu, rapaz. Simples assim, se a rodovia fatiou em duas bandas a região, direita e esquerda, ou em cima e embaixo, eis aí a explicação.

Viu aí, o tamanho da aula recebida do camarada alcoolizado? E o leitor acredita haver parado por aqui a explicação? De jeito nenhum. Martins falou do pós-guerra, das fazendas e sítios loteados do lugar. Comentou sobre localidades como Caramujo, Cova da Onça, Nossa Senhora das Graças e outros logradouros também. Mencionou serem ainda todos esses espaços, vez ou outra, referidos pelos antigos moradores por Baldeador. Estranho, esquisitíssimo, no mínimo diferente, achei que o álcool aumentou a confusão do professor. Mas não, os argumentos vieram confirmar: a antiga Fazenda Juca Matheus, outrora loteada, deu origem ao bairro de Santa Bárbara. A parte pertencente à fazendinha do Sr. Paulino Menezes (década de 60) foi aquela parte do chão de onde resultou o loteamento Parque Modelo. Isso mesmo, confirmei num site pelo celular.

De resto, só sei que, após a conversa, duas lições eu tive: tomei ótimas aulas de história niteroiense com Martins e, principalmente, aprendi a jamais menosprezar bêbados maltrapilhos em crise existencial, dormindo na calçada, com olhares embaçados.

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Erick Bernardes

A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.

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