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O apólogo da tesoura esperançosa, por Erick Bernardes

O apólogo da tesoura esperançosa

Havia uma tesoura cega que um dia se caracterizou por ser afiada e impecável, mas o tempo passou e o fio foi se desgastando. Ela começou a sentir sua função na vida diminuir, já não era tão importante quanto antes, afinal, costureiras famosas não a queriam mais em seus ateliês.

No entanto, a tesoura cega não desistiu do sonho de voltar a ser afiada e servir às mais famosas costureiras da cidade. Claro que não. Boa de memória, ela se recordava dos tempos em que configurava o orgulho de sua dona e queria sentir novamente aquela sensação de utilidade e satisfação.

A agulha constava como uma grande amiga da tesoura cega. Mas agulhas não precisam ser afiadas, não é mesmo? Por isso, não compreendia sua angústia. A tesoura cega se perguntava o que a agulha fazia para ser tão perfeita e não precisar de afiação.

_ Não tem segredo algum, querida tesoura. Nasci assim, com precisão no trabalho que realizo. Minha natureza não exige afiação como você. Basta que eu seja fina, com pontas intactas.

Além da amiga pontuda que nasceu para furar, a tesoura cega cultivava amizades com outros objetos no ateliê: carretéis de linhas, rolos de tecidos, fitas de cetim, entre variados utensílios de alfaiataria. Eles costumavam reclamar da incapacidade da tesoura, que a colega de profissão já não cortava tão bem quanto antes. Às vezes só mastigava, riscava e deixava os outros puídos. Preocupante. Uma tristeza só.

Porém, a tesoura cega não se deixou abalar por essas críticas. Ela continuou sonhando com o dia em que afiariam sua lâmina novamente e ela voltaria a ser o orgulho da dona e das costureiras mais famosas da cidade.

Certa vez, um enorme aparelho amolador apareceu no ateliê e notou a tristeza da tesoura cega. Tadinha, olhos lacrimosos brilhavam de esperança. O que estava acontecendo? A coitada, já incapaz de cortar qualquer coisa, narrou sua história, explicando como sonhava em voltar a ser afiada. O amolador se compadeceu da melancólica interlocutora e decidiu ajudar.

O aparelho de afiar pegou a tesoura cega e começou a melhorar as suas lâminas, cuidadosamente. A tesoura chegou até a sentir uma sensação de alegria durante o processo de polimento metálico, como se estivesse nascendo de novo. Quando o amolador terminou, os flancos da tesoura brilhavam como nunca. Ela se sentia tão feliz e realizada que não conseguia segurar as lágrimas.

Com sua afiação renovada, a nossa personagem voltou a servir às costureiras mais famosas da cidade, cortando panos e rendas com perfeição e precisão. Os carretéis de linhas e os rolos de tecidos agora elogiavam sua competência e habilidade.

A tesoura aprendeu uma lição valiosa com essa experiência e nos quer compartilhar.

_Mantenham-se afiados, lute para ser a melhor versão de si mesmo.

E, assim, o feliz utensílio cortante continuou a preparar tecidos e ajudar as costureiras. Feliz e realizada em seu trabalho, a história terminou assim.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/linha-hemp-cabo-gravata-tesoura-4088055/

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Erick Bernardes

A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.

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2 Comentários

  1. O apólogo da tesoura esperançosa é de fato uma bela escrita, uma linda reflexão.

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