Michelle Carvalho

Reminiscência

Ao rolar na cama abraçada pela insônia

Levanto-me destinada a descobrir

O que não me deixa dormir…

Caminhando em direção da porta 

Abro-a para um outro universo

Em que não encontro saídas

Mas sim respostas

Escondidas dentro de mim…

(Michelle Carvalho)

 

 

Na calma de uma noite tranquila e fria de junho, aproveito a madrugada, o silêncio, o momento em que a casa jaz em um sono profundo, quando possuo um momento somente meu, o qual aproveito para pintar, escrever, trabalhar, ler ou recordar… e, é sobre isso que vou falar… Recordar… ou seria traçar um paralelo e me auto redescobrir????

Em meio a tantas coisas a fazer, destinei-me a um momento de resgate, estava me sentindo muito solitária e, embora goste disso neste momento noturno, ultimamente tenho me sentido um tanto quanto desamparada, necessitando de coisas que perdi ou que já passaram… Um saudosismo que causa até certa dor, dor do corpo e uma precípua dor na alma.

Abri as portas de meu armário, desta vez não para organizar minhas roupas em ordem de cores, nem para ver meus cosméticos que tanto gosto… Desta vez abri as portas do armário como se abrisse as portas de minha vida, o invólucro de meu ser… buscava recordações… peguei fotos, caixas com cartas antigas, lembranças de amores, de amizades…

Neste ato de me interiorizar no passado iniciei por fotografias minhas como um bebê lindo, tão gordinho, bochechudo, olhos “rasgadinhos” como uma princesinha japonesa de cabelos negros, vastos e espetados para o alto. Em algumas destas fotografias estes espinhados cabelos tentavam ser domados com lacinhos e adereços femininos graciosamente colocados por minha mãe.

Como é possível uma viagem imediata no tempo com um simples retrato?? Revivo os poucos momentos vividos com meu pai antes de morarmos separados… recordo-me de cada detalhe embora possuísse apenas três ou quatro aninhos.

Vejo meu crescimento conforme folheio as fotos do álbum… sinto falta de pessoas que já se foram para junto de Deus, vejo as mudanças na família, no meu corpo, enfim, o entrar e sair de pessoas e lugares da minha vida, uma grande metamorfose em questão de minutos e lágrimas. Uma síntese de alegrias, tristeza, solidão e saudade…

Terminando os álbuns peguei um arquivo de cartas que guardo desde o 1º grau. Nossa, quanto carinho!! Amizades que não sei por onde andam, não sei como se encontram (casadas, solteiras, mães, pais… sei lá, mas teria curiosidade em saber); outras eu sei como estão, contudo algumas delas não querem mais falar comigo… propus-me a saber o motivo há algum tempo pois achei que valeria a pena esse “flash back”, no entanto estive errada durante muito tempo… os laços fraternos já se dissiparam e somente encontravam-se presos em minha fictícia imaginação…

Já no Ensino Médio, que saudade deliciosa!!!!!

Amigos queridos que cresceram profissionalmente, professores-amigos, que jamais esquecerei… Quanto às amizades-relíquias desta época reservo-me na situação de manter-lhes impassíveis em meu coração… amo-os imensamente!!!! Diante disto, tomei intento de realizar um grande encontro onde todos se mostrarão como estão agora (com sua prole, namorados, noivos, maridos, projetos, profissões), perante tal idéia tracei o ideal e anotei em um papel reservado, quero muito fazer isso! Sei que dará trabalho, mas valerá a pena! São pessoas incríveis! Faço isso mais por mim que por eles, por esta minha necessidade de resgate que sinto tão forte ultimamente. Quem sabe meus amigos não me buscam desta solidão e me encontram no vazio em que me perdi? Era tudo tão bom junto a eles e quero este sentimento de volta nem que seja por algum tempo…

Após esta meta, peguei caixas de recordações… Antigos amores…

Ah, o primeiro namorado… como sofri, como foi engraçado e como tudo era tão novo! Dediquei-me intensamente e após algum tempo fui retribuída, mas por percalços do destino não deu certo, e agora é um grande amigo que não me compreende muito, no entanto o considero muitíssimo, é um irmão que guardo dentro do peito embora ele não saiba disso… afinal, estudamos desde o Ensino Fundamental juntos, compartilhamos experiências únicas, loucas e inesquecíveis!!!

O segundo namorado… Este foi uma pessoa linda, meiga, um misto de ogro com príncipe… uma pedra preciosa a ser lapidada com a qual não soube lidar direito… vejo suas cartas, seus presentes, cada coisa marcou um momento… foram quase seis anos juntos e eu pensava que seria pra sempre… Sonhava com um casamento, aliança de noivado, enxoval, mas em algum momento temos de deixar as coisas que amamos seguirem seu caminho… se as ideias divergem, a felicidade está escassa e não vemos a reciprocidade na velocidade e quantidade que almejamos, temos de galgar a um próximo estágio, e assim fizemos… Marcante esta pessoa, este momento em que concluímos juntos a desesperança em nosso futuro…

Após este segundo resgate encontrei uma outra caixinha cheia de cartas, cartas minhas de momentos desesperados, momentos de angústia nos quais não me limitei a pensar ou a escrever. Esbocei todos os meus sentimentos em papéis, manuscritos à pessoa que confundiu minha essência em um dado momento de meu passado…

Escrevi muitas cartas às quais não enviei; questionando-o, declarando o que sentia não importando se o que experimentava em meu ínterim era bom ou ruim… marca de lágrimas nos papéis, alguns já comidos por traças que se alimentaram de minhas angústias…

Estas cartas as vejo agora como momentos retóricos quando questiono meu futuro, desejosa de respostas e quesitos prontos, receitas prontas… Tantas dores, tantas dúvidas… em certos momentos que as leio, busco-me naquele sentimento tentando resgatar o que sentira e relembro que muitas vezes ninguém poderia ter tais respostas, somente eu que, limitada “criança” desconhecia.

 

Eis o ponto mais profundo de minha interiorização: buscar meu “eu” perdido àquele tempo… Não o descobri realmente, contudo este “eu” nunca morreu como dantes imaginava, estava inerte no sono do lamento, embrulhado num invólucro do que poderia ser e não foi, no que ficara escondido como interrogação… E é o que almejo encontrar para consolidar este paralelo e enraizar-me em minha psique real.

Tais cartas do passado enviadas ao futuro, na verdade as vejo como base inicial destas dúvidas que vivem a assolar meu interregno interior. Dúvidas suscitadas há anos que se aprimoraram mas possuem um liame sintético similar e bem próximo… cartas do passado que começam a ser decifradas no presente, fonte para meu descobrimento e reminiscência… E, enquanto não me encontro totalmente, ainda vivo com saudades de mim ou do espectro que eu disseminava antes de brotarem todas estas dúvidas e questionamentos fantasmagóricos que ainda me fazem sofrer, mas que agora resgatados servem de parâmetro para minha nova existência.    

(Texto de Michelle Carvalho -Premiado com Menção Honrosa no VII Concurso Municipal de Contos da Prefeitura de Niterói no ano 2008)

Fonte:

Imagem destacada: https://pixabay.com/pt/photos/rota-c%c3%aanica-caixa-de-sombra-citar-3555938/

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Michelle Carvalho

Biografia: Advogada, Escritora desde os 13 anos, com participação em inúmeras antologias literárias e premiações no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ganhadora do Premio Baixada de Literatura em 2014. Lançou 4 livros: “Furor Letárgico da Alma” (2009), “Versos de Princesa Prometida” (2015 – na 17ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro) e “Cindy Entre Patas e Reinos” (2018) e Cindy Entre Patas e Reinos 2 (2019 – 19ª Bienal Internacional do do Livro do Rio de Janeiro) , estes dois últimos projetos de leitura na Cidade das Artes/RJ, em várias escolas nacionais e internacionais. Além de diversas participações em projetos culturais literários em escolas com palestras motivacionais, intervenções literárias e poéticas em saraus, sendo o último deles o Programão Carioca da Rede Globo no ano de 2018, Participação na FLIM e FLISGO no ano de 2019, bem como posse na ACLAM – Academia de Ciências, Letras e Artes de Magé.

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