Carina Lessa

Pandemia e Máscaras

 

Põe a máscara, tira a máscara.

Certa vez Aristóteles nos explicou a natureza do poeta, diz ele sobre o encantamento de artistas quando sentem violentamente as paixões de suas personagens. Oferece-nos a tragédia como gênero superior. Provoca a catarse necessária ao público no processo de purificação das almas.

Na Grécia, o uso de máscaras acentuava as expressões e o caráter dos personagens. Não esqueçamos: a arena era aberta em grande praça pública e, muitas vezes, as máscaras estavam a serviço do distanciamento entre atores e plateia. Havia uma preocupação que muito justifica a expulsão dos poetas promovida por Platão. A reivindicação rasa dos sentidos (principalmente da visão) favoreceria um sistema de plágios mal feitos do mundo ilusório. Na arte aristotélica, ignoram-se as máscaras, os sentidos abraçam o mundo das ideias e os poetas têm uma história para contar. Trago uma crônica de pouca vida. Decidam se a precariedade da narrativa é aristotélica ou platônica.

 

Uma jovem senhora acreditava ter o dom de coser roupas impecáveis. Na verdade, era uma perfeita dona de casa. Tratar de roupas era o seu maior prazer. Aproximo-lhes da verdade, para ela não existia o lado avesso, porque todo corpo carregava um espírito bem centrifugado. A calma só existe verticalmente, não há surpresa nisso, você fica sozinho e sente a arrumação quase sem alegria. Olha para o céu e uma luz projeta-se de relance causando o encontro do corpo com a calma. Descrevo o prelúdio da jovem senhora, mas abro espaço de reflexão em própria voz, não quero tolher o desabafo:

 

Uma modificação no estado natural das coisas era o inesperado. O sofrimento chegaria sem grande surpresa. Aguardava a hora marcada da morte. Quando se deita no sofá de casa, o teto lança gotículas de luz diante do olhar paralisado. Algumas vezes encontramos manchas antigas ou teias de aranha. As memórias alojam-se repentinamente e nos acomodamos em formas inalteráveis. Fantasias formatadas. Nunca morei em casa ou apartamento antes habitados. Preferia não ter de adivinhar a história por detrás das manchas. Não queria me distrair com um quadro antigo, pendurado de mau jeito ou caído no chão.

            Nos últimos meses, pareceu-me nova a história das perdas. O apartamento há pouco habitado atraiu-me de relance quando da visita. Senti cheiro de rosas e não quis saber se estavam vivas ou mortas. Se estariam em vasos resistindo em água cristalina. Banhei-me de luz, a sala encantadora… Uma certa poeira pairava por lá. “Só a poeira conserva os teus divinos vestígios”, deixei o poeta dizer. Absorvi o ar impuro. Sem tristezas, deixei que falassem os campos, que guardassem as memórias. As flores estavam presentes e não me importei, pela primeira vez, com o lugar. Um frio na barriga passou despercebido, não dei atenção ao sopro melancólico. Teria sido insensível?

            Quando se deita no sofá de casa é diferente. Depois de meses no mesmo lugar, você conhece a disposição das sombras, apreende o sentido dos objetos, percebe a escuridão que deveria evitar. Agora, sim, havia uma morte esperada. Para não deixar vestígios, reservei um quarto de hotel. Voltava de curta viagem e me instalava no Rio de Janeiro. Por lá, aparentemente, o inverno nunca é rigoroso. No fim da tarde, com roupão de seda, sento-me diante do laptop. Olho o mar pela parede de vidro. Eu poderia levantar-me, ignorar a morte necessária. Tudo parecia extinto. Imaginei o mundo preso numa grande gaiola. O corpo do pássaro era a gaiola. De repente, uma beleza cósmica multicolorida agarrava-se às nuvens despencando em mar aberto. O mundo, num só tempo, deslizou bem definido.

            Um raio furtivo extraiu do vidro algumas reflexões. Esqueci o túmulo. As luzes fixaram certa morada. Luiz descobria-se examinado. Ele andava sempre tão calmo, em silêncio, que acreditava me provocar medo. Deixava-me falar. Ouvia meus discursos sem perceber que o tom professoral sobre mim mesma escondia a dor natural da mesma vida. O fio de Ariadne era a minha própria vertigem. Aguardava. O silêncio parecia o eterno curso de Luiz. Esperava ansiosamente a chegada. Se nunca chega, entendo que se entregou ao infinito.

            Nunca houve a iminência da felicidade. Não senti o perigo.

 

(A luz se desloca para a multidão)

 

– Esperem, ainda preciso falar.

Entrego-lhes uma cena muito recente, voltemo-nos ao passado. Não faço rol de roupas sujas, ouvimos uma voz.

Eu lhes digo, temos um caso de roupas sujas. Não sei se as lavo, cuido da personagem e ofereço uma possível anedota.

– Não quero ter conhecimento da roupa suja, quero vê-las lavadas o mais rápido possível, mas preciso saber que foram lavadas. – ainda calma, declara a jovem senhora.

– As roupas só são sujas. Não estão ensanguentadas. Dá para equilibrar as horas do dia e da noite. O problema é mais o acúmulo, e vem da máquina de lavar roupa que, de vez em quando, emperra.

(Abro um parêntese, porque a personagem ensandecida, fissurada por roupas bem apanhadas, sente um trágico aroma. Imaginem grandes catástrofes. Se possível, encontrem Adamastor, tal qual nosso amigo Vasco da Gama em Os Lusíadas. Melhor ainda: sigam a nau do poema marítimo de Fernando Pessoa. Pandas, as velas brancas seguem o vento.)

Sim, a moça poderia pensar em ácaros invisíveis, mas era obsecada por limpeza. Sentiu um medo terrível. Precisava organizar o rol de roupas sujas. Sobrevieram sensações ondulantes, a casa enviesada, o enjoo, a pressão em pancadas, tudo por sentir as velas marítimas sem fim.

Vejam vocês, senhores. Tudo isso eu vi porque imaginei que a personagem deveria lavar roupas. Não me perguntem como. A gente quer desfazer o problema e aumenta o monstro. A personagem imaginava fazer o balde crescer? Limpava-se, limpava-se como ninguém.

(Perdoem-me, boas amigas. Infelizmente, mamãe já dissera “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. A mulher lavou roupas por dias, num movimento intenso e ondulante. Devo confessar, depois de uma elegância impecável, as vozes do corpo impulsionaram um eterno jogo entre tirar e colocar a roupa).

Faço uma pausa.

Falava de Pandemia. Não se enganem, falo de um bar. Um homem passa esbravejando, enquanto muitas pessoas bebem torres de chopp, riem e gargalham o cansaço em mesa de bar. O bar se chamava “Caminho do céu”. Põe placa, tira placa. Revejo cenas batidas do século passado.

Ah… toda a cena eu vi enquanto saía para comprar um presente.

– Adoro me mostrar nos trinques – o homem declara.

Sem paciência com essa história toda de roupas, a jovem senhora nos desafia:

Eu estou cega, completamente cega. Vivo no escuro. Já não posso entender suas palavras. Se estou no escuro, há de ser algo bom e novo. 

            Atenção e confiança dispensam palavras. Produzem corpos e temos palavras. Desfazem palavras e temos corpos. São corpos físicos e também esfumaçados. Há de se transitar entre as forças, são intermitentes e complementares.

            Gostaria de ter a oportunidade de sentir sem produzir palavras. Já as produzi em excesso. Escandalosamente. Estar no escuro também é uma maneira genuína de sentir. Eu quero o escuro. É na escuridão que os corpos verdadeiramente se encontram. Sensação de plenitude que dispensa as palavras, sempre incorrigíveis. Pensei ter lhes dito isso. Eu fiquei demasiadamente cansada das palavras, as palavras são para deuses. Deuses se vestem nos trinques. Julgam ter encontrado um alfaiate perfeito.  

            Minha roupa é manchada. Devo dizer que minha atitude rebelde é tirá-la quando me convém não enxergar as manchas.

            Arranco com força e fico no escuro.

 

De lá para cá foram muitos convites, põe a roupa, tira a roupa.

– Sim, o homem permaneceu por longo tempo fazendo convites, se arrumando belamente e deixando a mulher em espera. A mulher, depois de dias inteiros de trabalho exaustivo, casa limpa e roupa lavada, imaginando o abraço e o jantar ilusórios.

Não há um Grand Finale. Não há uma solução deus ex machina. Não sei se vale a pena um título.

– Sim, boas amigas, já me disseram que a encenação faria sucesso sob o nome Assédio.

Aos possíveis curiosos, deixo um pseudônimo para que não pensem que a história é minha.

Lori.

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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