Carina Lessa

Enquanto a casa não se organiza: o animatógrafo

Contaram-nos que amor proclama ternura. O animatógrafo de Maria impressiona pelo antiespetáculo. Os recortes, aparentemente antiquados, movimentam as cenas cotidianas da casa. Diante do enigma da luz, nos traz novamente a grande questão pictórica do século XVII: a inflexão das sombras. Sentimo-nos invadidos por Ticiano com suas tendências luscos-fuscas. Nos olhos, o império de uma claridade meridiana e já não sabemos em qual lugar nos encontramos.

Os quadros em movimento enunciam as palhetas que viravam espelhos de longos tempos de maturação, nos quais poderiam se refletir cenas alegres ou melancólicas da alma em movimento. Os hóspedes do animatógrafo não pertenciam ao espetáculo, as paredes vibravam e palpitavam os calores bucólicos dos pequenos lugares, cidades brincalhonas e mascaradas feito saltimbancos terrestres. A preocupação com a luz veio caprichosa e de intenso reboliço para o espaço de uma casa num conjunto variadíssimo sequioso de si mesmo, pressupomos. Maria guarda objetos estranhos e avessos à rua, encontra no largo campo do interior quadros rococós tão simples que retirariam o mau gosto contemporâneo do espetáculo. Fica explanando o terreno por todas as partes, procura um abrigo despretensioso na ventania do quarto, ocupa-se das pequenas ideias, das janelas que levam ao quintal quando escuta a docilidade do banjo que retesa a pele no cotidiano. Não sabe de onde vem a musicalidade que pertence ao espaço da janela ao quintal, do quintal às redondezas, das redondezas aos arvoredos, destes ao mundo que é de ninguém.

Todas as obras-primas naturais inferiorizam-se ao espetáculo. Granjear-se gratuitamente aos moldes contemporâneos não parecia ser a vontade dos passos caseiros de Maria. Sob a crítica, convém manter o encontro fortuito com os hóspedes, aqueles que a procuram, sem pedantismo ou conformismo, apreciando seus pratos, afetando sua cozinha, reabilitando sua ternura, realizando modernamente o ambiente histórico-cotidiano de merecido lugar nas raias do esquecimento.

 

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/cena-oeste-selvagem-eua-am%c3%a9rica-996639/)

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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