Oswaldo Eurico Rodrigues

Um texto reinventado antes da fome do escritor.

São muitas as vezes em que as ideias resolvem brincar comigo de fugir de mim. Elas devem pensar que eu penso nelas como minhas maravilhosas donas. Estão enganadas! Não penso nada! Por isso tomam conta deste cara descarado. Elas me manipulam e me deixam tonto. Saio donde estou e flutuo em todos os lugares que conheço e não conheço. Pairo até pelas regiões que nunca existiram e talvez nem cheguem a existir. Dessas terras de nunca, de sempre e de talvez, eu vou catando gente moldável e gente cristalizada. Essa gente vai me ajudando a lidar com as ideias ora cruéis, ora bondosas ainda na matéria bruta.

Noutro dia, escrevi duma musa: “A nova musa”. Ela apareceu no mês passado evocada pelo Renato Cardoso e pela Ivone Rosa. Foi parar na minha tela. Daqui dois meses, ela aparecerá no site antes deste texto em fase de gestação agora. No mês seguinte, o parágrafo em construção agora terá se juntado a outros formando um corpo já adulto com perfume de criança. Na realidade, ele surgiu quando eu falava dessa musa, cujo nome não vou repetir porque ela ficou presa lá na outra crônica. Está aguardando pelos leitores resgatadores de personagens presas em histórias.

Deu para perceber o que as ideias fazem comigo? Obrigam-me a reinventá-las, citá-las a todo instante. Elas devem ter medo de morrer, por isso querem me usar como instrumento materializador, ainda que duma materialidade virtual com sabor ilusório de papel. Quem sabe um dia alguém vá além do digitado, do lido, do ouvido e plante uma escultura, erga uma museu? Seria ótimo! Enquanto isso, vou arquitetando palavras e instalando pensamentos nos olhos e ouvidos dos curiosos.

Vamos ao texto principal nascido dum desvio do caminho. Na escrita, desvios não são atalhos, são alongadores de narrativa e penduricalhos de novos textos. Em seguida, eu te mostro um deles saído da incubadora da outra edição.

 

O título provisório era “Texto intrometido para atrapalhar a história inspirada pela menina-musa e deixar com ansiedade quem lê: o ingrediente perfeito forjado na oficina de crueldade nossa de cada dia”.

 

            O título definitivo inventado agora está lá em cima. Vejam, acessem! Deixem seu comentário. Precisamos de mais leitores.

 

Nosso assunto desse bimestre é o Classicismo. Nosso autor será Camões. Cada grupo deverá escolher um dos cantos do poema épico português e apresentá-lo à turma de forma criativa. Não preciso nem dizer que esse doido deixou a turma apavorada! Mas ele era realmente doido. Pior; transformava seus alunos em doidos às vezes piores. Libertava a maluquice abafada pelas leis e orientações dos especialistas em ensinar o que nunca fizeram: entrar numa sala de aula de verdade, com alunos de verdade, inseridos num contexto social plural.

Tivemos que ir além do Bojador, enfrentar gigantes e, com Boa Esperança, chegamos ao nosso dia da apresentação do seminário “Classicismo em Camões”. Houve de tudo! Tudo de bom! A maioria falou da sua experiência de leitura, outros mostraram sinopses pesquisadas em livros. Os gêmeos com nomes de profetas musicaram o canto I. O professor não sabia se aplaudia ou se secava os olhos de emoção. Hoje os dois têm uma banda de rock junto com o irmão caçula, que não era da turma.

Esse foi um dos sucessos dessa moçada linda! Nas aulas, surgiam ilustrações das narrativas ou de conceitos da literatura. Havia encenação de trechos de obras consagradas. Liam-se também os gibis e jornais da época. Tudo era pretexto para a ensinar e aprender se divertindo. Era uma turma muito linda mesmo. A menina-musa não estava lá. Chegaria mais tarde numa das reedições oficiosas de projetos de Literatura para o Ensino Fundamental.

Professor, você ficará com as quintas séries, pois não conseguimos quantitativo para o Ensino Médio à tarde. Era o ano do Ensino Fundamental. Em todos lugares só havia turmas desse seguimento.  Adeus Dom Dinis, Gil Vicente, Camões, Gregório de Matos, Castro Alves… Olá, Ziraldo! Olá, Sylvia Orthof! Boa tarde, Tatiana Belinky! Que bom que vocês estão aqui para me salvar! E, a cada dia, uma desses mestres da literatura nacional aparecia diante da turma. Chegou a vez da Srª Ana Maria Machado.

Eu lia o livro Bisa Bia, Bisa Bel durante as aulas. Levamos alguns dias nessa leitura. Os alunos não faltavam às aulas querendo saber da continuidade do texto. Foi um daqueles sucessos pedagógicos só mesmo valorizado pelos da área ou por quem ame muito a troca de saberes entre gente de todas as idades. Depois dessa experiência, não consegui mais fazer uma reedição da contação de história em capítulos. Tive de me adaptar aos novos tempos cujas ideias escoam pelos ralos do descompromisso. Tive de aprender a ler novamente. Ler rápido e esquecer rápido, pois outro esquecível vem por aí. De vez em quando, entro na máquina do tempo e saboreio narrativas mais extensas mesmo num processo de fragmentação, parcelamento de leitura com juros. Ainda consigo reter informações. Às vezes, me atrevo a escrever mais demoradamente. Corro o risco de ser riscado, lacrado, excluído. Prefiro correr esse risco.

Como eu ia dizendo, as leituras com as crianças eram um ótimo exercício para mim e para elas. Acabamos por nos conhecer melhor sem dizermos nada sobre a nossa vida. Anos mais tarde, uma das minhas ex-alunas brilhantes, me contou que havia guardado um trabalho solicitado por mim sobre os doze trabalhos de Hércules. Para ser sincero, já havia me esquecido da tarefa. Ela me disse encontrar forças nele para enfrentar o seu cotidiano no emprego. Fiquei pensando como temos coisas para fazer todos os dias e sem a força do semideus parrudo ou do juiz israelita Sansão. Falta-nos também a esperteza do Malasartes, a fala franca da Emília. Esses personagens, a despeito das suas falhas, mostram um pouco do que cada um de nós é ou poderíamos ser. Precisamos enfrentar nossos medos vindos de dentro e de fora com força cuidadosa, astúcia não corrosiva e sinceridade respeitosa. Esses personagens, através de seus pontos fracos, nos ajudaram a frear nossos impulsos sem nos aniquilarmos. Levantávamos das suas quedas antes de experimentarmos as nossas. Felizes são os meninos e meninas de agora ainda capazes de se encantar com as histórias reais ou imaginárias. Ainda vejo os da fase pré-escolar ou dos anos iniciais do Ensino Fundamental interessados pela narrativa do patriarca Noé e sua arca cheia de bichos. Ana Maria Machado escreveu no livro De fora da arca sobre as criaturas incompatíveis com os frágeis dias atuais. Eram criaturas mitológicas incapazes de sobreviver no nosso mundo tão cético e tão carente de imaginação, impossibilitado de compreender símbolos. Meus sobrinhos ficavam encantados quando ouviam a contação desse livro. Era eu mesmo o contador. Sem grandes pretensões, sem recursos de adereços cênicos ou indumentária especial. Lia com eles sentado ao chão, de bermuda e chinelos.

Líamos bastante. O mais velho dos netos do meu pai gostava muito de bichos (ainda gosta). Sylvia Orthof vinha com a Tia Januária veterinária. Nunca li um livro tantas vezes! Cheguei a decorá-lo.

Os bichos enchiam a nossa nave. Os músicos de Bremen se juntavam com os Saltimbancos brasileiríssimos em perfeita afinação. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá acrescentavam sotaque baiano bem Amado. Não só da Alemanha e do Brasil chegavam os bichos; eles vinham da África, da Ásia, do mundo inteiro. As nossas viagens seguiam nas letras.

As leituras iam de casa para escola, da escola para casa. Não só de animais vivíamos. Havia jardins leiloados, feijões mágicos e árvores de vida longa. Nossas histórias aconteciam no Sítio do Pica-pau Amarelo e por onde o pó de pirlimpimpim nos levasse. Via os meninos maluquinhos crescendo e se transformando em caras legais. Algumas meninas já se anunciavam como professoras maluquinhas.

Foi uma época boa de era uma vez de novo no tempo em que os animais falavam e que se amarravam cachorros com linguiça continuando a existir intensamente sem pausa para respirar mesmo quando o escritor resolve fazer uma paradinha para suspirar fundo. Ufa! Fiquei cansado. Vou beber água e já volto.

Voltei da cozinha morto de fome (aliás, vivo faminto)! Não posso comer casa feita de biscoito porque engorda. Também não vou roubar rabanetes para minha esposa. Ela não está grávida e não gosta de rabanetes. Estou tentando uma alimentação saudável e saborosa. A Literatura oferece excelentes pratos hipercalóricos de cores, de cultura e beleza. Temperos variadíssimos! Estão servidos?

 

 

 

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