Valdeci Santana

O ladrão de versos

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O ladrão de versos

Pouquíssimas vezes eu cometi delitos graves na vida. E mais raras ainda foram as ocasiões em que eu os confessei. Mas, agora, açoitado pelo chicote violento do tempo, que nos traz mais arrependimentos do que louros de uma juventude ida, mergulhado nas jurisdições da velhice, que é quando a proximidade da morte nos exige um profundo exame de consciência, sinto uma necessidade absurda de recorrer ao lápis e papel, para registrar uma confissão.

No entanto, antes de expor meu crime para a apreciação dos meritíssimos leitores, é importante mencionar que regresso de um enterro. E a pessoa que agora jaz no involucro sepulcral, cuja lápide hei de visitar pelos dias que ainda me restam, é a razão pela qual cometi o vergonhoso crime. E é justamente em vosso tributo, que resolvi escrever.

Eu era ainda rapazote. Nada diferente dos tantos tipos moleirões, com ares de provincianos de um romantismo desapegado, facilmente encontrados atrás dos balcões do Rio Janeiro, naquele resquício de Belle Époque. Eu era caixeiro garçom, num dos tantos cafés requintados espalhados através da extinta Ouvidor, espremido entre magazines e pequenas, porém, não menos luxuosas boutiques. A vizinhança se beneficiava da fragrância das colônias adocicadas, que vazavam através das brechas oferecidas pelas elegantes vitrinas. A arquitetura distribuía ares parisienses através daquela avenida onde vicejava a nobreza que caminhava vagarosamente pelo calçamento de pedra portuguesa.

O café era reduto dos literatos e renomados empreendedores, que eram atraídos pelo conforto do ambiente e pelo respeitoso silêncio, que somente era cortado pelo som monótono de talheres e porcelanas. Os poetas eram os que mais atraiam minha atenção. Sempre os vi como uma classe seleta, de seres incumbidos de tratarem as angustia da alma, ao passo que se diluem tentando decifrar o amor. Esgueirado lá do balcão, eu os observava em suas reflexões habituais, tais quais matemáticos, procurando a perfeita simetria das palavras que esculpiam no papel. E quando atingia êxito no alinhamento das estrofes, suas reações eram inesquecíveis. Uma comemoração singular e tão discreta, que somente um dedicado espectador seria capaz de furtar. Tal qual no dia em que Olavo Bilac concluiu um soneto. Sua reação foi erguer-se, com expressão embasbacada atrás dos bifocais ovalados e entornar numa só golada, um copo de conhaque de alcatrão. Um brinde à criatividade. Sempre invejei os poetas!

Na ocasião, costumava pensar cá com meus botões, que se me fosse atribuído o gracioso dom da escrita, o caminho para o coração de minha amada Maria fosse encurtado por magnificas cartas de amor. Certamente, escrever-lhe-ia diariamente as mais seletas palavras, para expressar o tamanho amor que lhe tinha, e de quanta angustia se acumulava em minha alma, ante sua demora em decidir-se entre este pobre garçom e um estudante almofadinha residente na Gávea.

Que era recíproco o apreço que lhe tinha, não havia dúvida, embora, eu receasse, que de sua parte, não se equiparasse em igual medida ao tamanho de meu amor. A cada dia minha mente se convencia de que me faltava um algo mais, para arrancar-lhe um definitivo sim. Algum romantismo que tutelasse meus gracejos. Meu rival era nobre, e há de se imaginar que sua criatividade fosse também nobre. E esta ideia estremecia minha alma. Um grande gesto de romantismo certamente liquidaria o caso a meu favor. Decretei.

Quis o destino, que este estalo viesse-me à cabeça, no momento em que eu observava um assíduo poeta que, com os cotovelos enterrados na mesa, tecia algumas frases num caderninho de bolso, entre uma xicara e outra de café. Os frequentadores do café lhe deram a graciosa alcunha de “O Bruxo do Cosme”. Inicialmente julguei se tratar de uma pilhéria contra seus modos reservados, mas, logo descobri que a alcunha apontava para seu hábito de queimar velhas cartas e textos num caldeirão, lá no Cosme Velho. Eu devorava seus artigos nos mais importantes jornais da cidade, assim como acompanhava suas conquistas dentro da vida politica.  Era um tipo simpático, comedido, olhar penetrante e que parecia apreciar o silêncio.

Limpar a mesa vizinha foi o pretexto que encontrei para aproximar-me e, por cima de seus ombros, cometer, não o crime ainda, mas a indecência da bisbilhotice. Fui ligeiro ao sugar a seiva adocicada daquelas palavras miúdas e guarda-las na memória. Tão concentrado estava nas frases, que o bom sujeito nem percebeu meu deselegante gesto. Ou, se tomou ciência, ignorou gentilmente. O fato é que naquela mesma noite, tendo findado o expediente, montei acampamento debaixo da janela de minha Maria, não sem antes repetir dezenas de vezes o poema, até que este se fixasse em minha mente. Logo que ela mostrou-se na janela, corri a declamar aquele poema com a maestria de um perito poeta. A forma como coraram as maçãs de seu rosto, o sorriso demorado, os olhos mergulhados em ternura, tudo atestava que o caminho para seu coração era justamente aquele. Mais alguns poemas e eu lhe faria sala. Até mesmo sua mãe, ao topar-se comigo na rua, mencionou o quanto “meu” poema fizera suspirar a filha.

O poema era o caminho que me conduziria ao matrimônio com Maria. Só restava-me agora uma questão: como consegui-los? Foram longas horas improdutivas tentando colher uma frase sequer no árido solo de minha mente infértil, mas, nada satisfatório surgia.

Na segunda vez em que o poeta retornou ao café, não perdi tempo e tratei de sondá-lo à cata de suas magnificas palavras. Mas, era dia de casa cheia e as exigências do oficio não davam trégua. Nenhuma frase.

Ao vê-lo enfiar seu caderno de anotações no bolso do paletó que eu mesmo pendurei no encosto da cadeira, mandei às favas a decência e arquitetei um plano para o roubo. Decidido e seduzido pela certeza de que haveria dezenas, senão centenas de frases embutidas ali, inventei um pretexto convincente para aproximar-me. Servi-lhe uma bandeja com empadinhas de ostras e lhe disse que era um mimo da casa para com um freguês tão distinto. E ao inclinar-me para ele, habilmente lhe furtei o caderno. Caso fosse descoberto, custaria meu emprego, mas, Maria merecia tal sacrifício. Além do mais, ouvi certa vez, um poeta dizer que para se obter o amor é necessário apostar alto. E eu estava apostando todas minhas fichas.

Havia sim muitos poemas no pequeno caderno. Palavras sedentas por serem atiradas aos ouvidos mais sensíveis. O suficiente para boas semanas de namorico ao pé da janela. Mas, a maioria das anotações era de cunho profissional, como discursos para o parlamento. E isso me trouxe um arrependimento imenso. Sentimento que me acompanhou por algumas semanas, e assim como sumiram minhas acnes, também desapareceu.

Senhores juristas, confesso que não carrego mais arrependimentos. E pouquíssimas vezes recordei aquele roubo que me custou um maravilhoso e duradouro matrimônio com minha eterna Maria. A mulher que hoje mesmo enterrei. Lógico que mais tarde lhe expliquei a trapaça, e agora que ela se foi, única testemunha deste crime, receio levar para o túmulo este fato. Ao tribunal deixo meu caso à mercê da sentença, ou, da cumplicidade que seria bem vinda. Quanto a minha vitima, o talentoso poeta romancista, deixo minhas oportunas desculpas, mas, acima de tudo, meu agradecimento ao nobre freguês, vitima de meu roubo, Machado de Assis.

 

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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