Ze Arnaldo

COISAS PERDIDAS

Eu vivo perdendo coisas. Livros, receitas, guarda-chuvas, chaveiros, músicas.

Há uma canção em que falo sobre os sambas que perdi antes de compor. Dói perder uma melodia ainda no parto porque é triste conviver com a ideia de que ela talvez crescesse bonita, junto com a letra, agora viúva, condenada a passar o resto de seus dias reclusa, numa gaveta. Não sei para onde vão essas melodias que desaparecem na escuridão da memória, junto com mil outras coisas que a gente esquece. Será que, volúveis, vão pousar no ouvido de outro compositor? 

É chato perder algo de que se goste. Lembro até hoje com saudades dos meus times de botão, especialmente do Nilson Dias, um amarelinho de madrepérola que infernizava as defesas com chutes parabólicos, que quase sempre  terminavam sua trajetória estufando as redes dos adversários. Não me esqueço de uma calça jeans que usei durante toda a adolescência, para desespero dos familiares, chamada pelos amigos de “na alegria e na tristeza”, porque ia comigo ao colégio e às festas, ao Maracanã e às missas de domingo. 

Sinto falta de muitos livros que me fizeram solidária companhia e que não tenho mais: “A história da riqueza do homem”, de Leo Huberman, que reli compulsivamente durante meses, no segundo grau; “Marco e os índios do Araguaia”, de Odette de Barros Mott, talvez o primeiro que tenha lido inteirinho, ainda na quinta série; “Antologia escolar de contos brasileiros”, que tinha, entre outros, “O peru de Natal”, de Mário de Andrade; “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan; e “Afinação da arte de chutar tampinhas”, de João Antônio. Onde foram parar o “Grande Sertão…” cheio de indagações coloridas, o “Brás Cubas” todo anotado, “Os Lusíadas” com várias estrofes colocadas na ordem direta e com  análises sintáticas de muitos versos – distração deliciosa nas longas  viagens de ônibus?

Atualmente, tenho perdido palavras. Noto que algumas delas saíram da minha boca e de meus textos. Onde foi parar, por exemplo, alvíssaras? Terá sumido porque não há mais notícias alvissareiras a serem dadas? Ninguém me convida mais para efemérides e não fazemos mais colóquios de qualquer natureza. Nada mais no mundo é formidável e os nosocômios são chamados por siglas. Terão ido essas palavras para o mesmo lugar em que foram encostados o mata-borrão, a meia-sola, a vitrola, o disquete, o ferro de engomar e o carburador?

As palavras que somem levam com elas um pedaço do mundo que representavam e os sentimentos que traduziam. Não enfeitam mais nossas casas, por exemplo, o lustre, a penteadeira ou a cristaleira. Sumiram os objetos e ficaram só as palavras que os representavam, vagando na memória dos mais velhos como almas penadas, sem os corpos que habitavam. 

Se algumas palavras e expressões desapareceram, outras estão em franco processo de extinção, como o muito obrigado, o por favor, o dá licença, que são frutos da cordialidade e da gentileza, sentimentos escassos em nossos dias.

Palavras que desaparecem vão se esconder, eu acho, no Reino Perdido do Beleléu, que é um mundo paralelo onde convivem tampas de canetas, meias, moedas, sonhos, chaves e melodias que perdemos ou que esquecemos. É possível que já não tenham mais nenhuma utilidade do lado de cá do mistério, porque cumpriram sua missão neste mundo cheio de significados frívolos, que vêm e vão. Talvez, por isso, tenham saído de nossas bocas à socapa e à sorrelfa.

Link da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/leve-luz-light-casa-7203699/

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