Ze Arnaldo

Minha vida é um livro aberto

O primeiro livro que li inteirinho, na quinta série, hoje, sexto ano, foi “Marco e os índios do Araguaia”. Gostei tanto que o li de um fôlego, acho que numa tarde/noite. Ao perceber que estava me aproximando do fim, fui tomado de enorme dilema; queria saber como terminava a história, mas, ao mesmo tempo, não queria que ela acabasse. Refuguei várias vezes, até virar definitivamente a última página. Passei por isso com outras obras ao longo da vida, que seria transformada para sempre pelo convívio com a literatura.
              Até esse livro, marco, sem trocadilho, da minha vida leitora, lia gibis, jornais, revistas, didáticos e, até atlas, enciclopédias e dicionários, o que me permitia, em algumas ocasiões, dar uma de sabido e dizer, com cara de enfado, para quem perguntasse o significado de casmurro, por exemplo – “Alguém que, por temperamento ou circunstância, tem personalidade ou comportamento fechado, mal-humorado, tristonho, soturno, meditabundo”. Ou despejar, às vezes inconvenientemente, conhecimentos decorados sobre jacarés, os afluentes do rio Amazonas, Santos Dumont, Duque de Caxias, Inconfidência Mineira, a Alfa Centauro, Borba Gato, o corpo humano. Era só o que eu tinha à disposição para ler, e eu me fartava nesse alimento.
Em seguida, caí do Meu pé de laranja lima dentro da obra de Monteiro Lobato. Comecei como quase todo o mundo pelas Reinações de Narizinho, e não parei mais. Depois disso, no segundo grau, vieram os clássicos brasileiros e portugueses. Nem sempre gostava muito dos romances que me mandavam ler, mas, para quem tinha começado pela Barsa, a Moreninha era pinto. Li com sentimentos distintos Machado – tudo! – Senhora, Lucíola, Inocência, Iracema, Eurico, o presbítero, O cortiço, Os maias, A escrava Isaura, Memórias de um sargento de milícias, Lucíola, O crime do padre Amaro…
      Já me considerava um leitor experiente, pronto para obras mais robustas, quando uma professora me emprestou Malagueta, perus e bacanaço, do João Antônio. Fiquei besta! A gente pode escrever assim? Sobre isso? Desse jeito? Escrevi, nessa época, um negócio, que a professora me disse ser um conto. Mas tá bom? Pra um garoto de dezesseis, tá ótimo! Fiquei feliz.
      Já rapaz, uma amiga-vizinha, quase namorada, cujos pais tinham posses, apresentou-me a um negócio chamado Círculo do Livro. Era o máximo: a cada semana, um livro novo era entregue aos seus associados. Ela tinha dezenas de livros dando sopa em casa. Eu ia pra lá, à noite, e pegava à vontade. Li Sidnei Sheldon, Irwin Wallace, Tom Wolfe, Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Carlos Castanheda, Mario Vargas Llosa, e os nossos Millôr Fernandes, Ignácio de Loyola Brandão, João Gilberto Nol, Rubem Fonseca, Luís Fernando Veríssimo. Viajaram comigo pelos ônibus da cidade títulos estranhíssimos, que até hoje ocupam lugar na minha memória quase sem espaço: Os sete minutos, Fogueira das vaidades, Enterrem meu coração na curva de um rio, A erva do diabo, O caso dos dez negrinhos.
Na graduação, conheci finalmente a poesia. Oswald me fazia rir. Mário de Andrade me assustou um pouco. Bandeira arrebatou-me! Li em sequência o que houvesse dele na biblioteca, lugar que eu frequentava mais do que o Centro Acadêmico e, até, a sala de aula. Em seguida, li Quintana, Vinícius, Gullar, Jorge de Lima. O Drummond poeta – só conhecia o cronista – acompanhou-me por muito tempo, indo comigo, dentro da indefectível bolsa de brim, para todos os cantos. Quando não tinha o que dizer, o que era muito comum, lia-o para alguém com quem estivesse entabulando uma aproximação. Nem sempre dava certo.
      No meio da faculdade, encarei, com enorme dificuldade, Camões, Pessoa, Cervantes, Homero, mas me deliciei com Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Érico Veríssimo, Zé Lins e Graciliano. Intercalava a leitura dos regionalistas com os deliciosos livrinhos da coleção Para gostar de ler, que eram volumes de crônicas e de contos, reunindo um timaço que tinha Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino, Marques Rebelo, Dalton Trevisan, Carlos Eduardo Novaes, Clarice…
        Um dia, instado por uma tarefa acadêmica, fui à biblioteca e puxei para mim um exemplar do Grande Sertão. O calhamaço, nos meses que se seguiram, me conduziria por caminhos traiçoeiros, inóspitos, até, da língua e da literatura; a cada página, uma surpresa. A floresta de palavras, na qual, em alguns pontos, me perdia, tinha um terreno lodacento, tortuoso, cheio de armadilhas, onde um leitor desatento pode se perder e nunca mais voltar. A jornada imposta por uma professora me deixou marcas das quais não sarei por completo. Quando finalmente atravessei o Liso do Sussuarão e saí das veredas de Guimarães, estava impregnado infinitivamente pela narrativa caudalosa, transbordante de Riobaldo, que ainda ecoa dentro de mim, enquanto agora escrevo.
        O acesso aos livros e à literatura fez-me diferente do que eu, certamente, seria. Não sei quem teria me tornado se não tivesse ido com aquele menino paulistano até o centro geográfico do Brasil, para conhecer, junto com ele, os índios do Araguaia. Eu, que nunca soube bem o que dizer, aprendi a ouvir, e tenho tido nos autores que citei ali em cima, e em outros que não expus por puro esquecimento, ótimas companhias ao longo da vida. Eles estão sempre comigo, no que penso, no que digo e no que sou. 

 

 

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4 Comentários

  1. Os livros e seus/ suas autores/autoras para mim sempre foram fontes do conhecimento e prazer. Parabéns pelo texto

  2. Círculo do Livro, muito bom, mas entrega idade kkk. Parabéns Zé Arnaldo e que venham mais livros e autores por muito tempo.

  3. linda declaração de amor à literatura!
    os livros são um refúgio, uma inspiração. gosto de trocar, dar de presente, grifar, escrever minhas impressões e às vezes até fazer música inspirada neles.
    bjos

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