Oswaldo Eurico Rodrigues

De letras que vão e vêm…

De letras que vão e vêm…

 

O objeto livro no princípio era um paralelepípedo não tão duro, mas extremamente  consistente e forte o bastante para absorver o tudo e o nada. As mãos ainda muito pequenas não conseguiam prender um desses objetos sequer, mas o olhar era imenso. Todos os livros iam parar dentro dele sem o dono das mãos saber para que serviriam esses paralelepípedos quase macios e flexíveis. O menino, na verdade, não sabia o que eram paralelepípedos. Sabia o que era pedra, o material do paralelepípedo na sua terra. Mas soube disso no futuro depois do livro antes abrir um livro. A palavra chegava ao garoto na voz da matriarca. Era cuidada na voz da mãe. Ensinada na voz do pai. Diversificada nas vozes dos tios e primos. Ele não sabia que palavras poderiam ser escritas, pois não sabia escrever. Não sabia de sons se transformando em rabiscos pretos em folhas brancas. Um dia ele viu um jornal. Os risquinhos repetidos naquelas folhas enormes como lençóis o fascinavam. O preto e o branco formavam aos olhos do menino ondas cinzas com algumas imagens querendo emergir. Para ele era a pré-história do livro. Pré-história é história nas pedras. As imagens de sangue e seivas e gorduras. O menino gostava das pedras e as arremessava na água e as ondas iam se propagando no sempre até o hoje e o amanhã. A educação no futuro presente a inflar o passado era dura. A flexibilidade veio nas folhas do livro, o paralelepípedo de celulose estratificada.

Esse garoto conheceu as letras nos ares, pois voavam antes de serem presas nas gaiolas de papel. Ele avançou em suas descobertas e ficou fascinado. Poderia prender as palavras também. As palavras agora saiam das paredes da sala de aula para a imensidão das folhas do seu caderno. Ele pensava nos cadernos como pré-livros. Os livros eram os pós-cadernos. Eram os jornais para sempre pelo menos na sua imaginação fascinada de cientista mirim. Eram jornais robustos e compactos. Poderiam até ficar em pé. E o rapaz já conseguia aplaudir de pé os espetáculos saídos dos livros. Os múltiplos palcos no grande palco alimentavam o imaginário do rapaz! As cortinas foram abertas e o cara não sabia como lidar com a ribalta. Ele até hoje se sente ofuscado com as luzes. Resolveu, então, canalizá-las nas telas. As luzes revelavam os instantes agora presos como as palavras novamente em papel. Era a era da imagem. O homem viu as tintas escreverem em luzes e formas. As paredes ficaram preenchidas não dos bisões e lanças das cavernas, mas sim dos leões abatidos todos os dias com pinceladas, rabiscos, tecladas e cliques. Nas paredes e telas os sapos são regurgitados da lagoa ácida de sofrer.

Nos caminhos do escrever, o homem menino garoto rapaz ancião envia as palavras do sempre e do nunca para prisões libertadoras. O folhear do papel é imaginado na tela dum computador. Não mais mofo, não mais umidade ameaçadora. Não mais cupins. Não mais traças! Os ratos mudam de rota. Não mais livros. Foram todos embora! Destruídos… Aos milhares não mais existem e o sofrimento duma época hoje é revelado. O fascínio do menino ainda existe na sua imaginação de homem maduro. Talvez não queira ainda publicar em meio físico porque, em realidade, não sabe lidar com a morte desse objeto tão caro e ao mesmo tempo tão desvalorizado na sua terra natal, ainda que seja berço de grandes escritores.

Dia desses, o narrador dessa crônica teve a honra de ser o portador dum presente ainda presente nele provavelmente para sempre mesmo sabendo ao som da música da sua juventude do sempre sempre se acabando. Um rapazinho incrível entregou ao menino de décadas atrás um livro para ser entregue a um homem ímpar como todos nós somos ímpares sem saber. O presenteado com o livro faz sua singularidade existir também libertando muita gente e lugares para casas de papel. O presenteador também se faz singular nas atitudes de rapaz futuro adulto brilhante. E o narrador portador do presente foi presenteado com algo intangível: a gentileza escassa nesses últimos e repetitivos dias.

O presenteado e o narrador perderam livros. Ganharam milhões de outros bens imensos para caberem em páginas ou mesmo em meio eletrônico. Ganharam gestos nobres e abrangentes a sustentar existências e humanidade.

 

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2 Comentários

  1. Incrível o poder de criar imagens mentais. Estamos diante de um lindo poema em prosa, uma textura de vozes temporais que se unem para exaltar a atitude do presente no presente. Curioso o jogo semântico se espraiar ao longo do universo que o seu texto contém, Oswaldo: da pré-história à modernidade e de volta ao começo, ou melhor, recomeço com o livro dado pelo menino e cuja importância é pedra fundamental. Pedro das Chagas, com essa pedra re-edificarei a minha igreja (biblioteca), atenuador das minhas dores, minhas chagas.

  2. Preesenteado com o livro, faz sua singularidade existir também libertando muita gente e lugares para casas de papel.
    Que incrível escrita, assim se faz em nossa mente esse lindo sonho, enquanto sonharmos teremos histórias a serem contadas.
    Uma bela narrativa.

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