Carina Lessa

Enquanto a casa não se organiza: a lavadeira-mascarada

 

Malvólio não sai do quarto, acredito que seja caso de semana. Tudo aconteceu quando disse que não lhe daria conversa, que a fala é coisa parca, que no século XXI ainda não se fala português no Brasil, menos ainda inglês ou italiano. Aproveitei para ir ao Jardim Botânico, vitórias-régias sempre me encantam, o carnaval passou rápido demais, e o ano já é bem-vindo desde as calças de dezembro em 2022, mas abri uma concessão para os nascidos com a quaresma. Há muita doação por aí e não negligencio nem as tripas, pois que a morte já não existe e os vermes deixo para depois.

A flauta transversal vem antes do trombone e não me apraz adiantar os compassos de Ravel. Uma lavadeira-mascarada sussurrou delicadamente e senti o espírito aventureiro que nos aproxima dos homens, sensação de baile na terra e riacho nos tímpanos, um colóquio pela manhã. A cauda deslanchou um dueto de poucos pássaros, o bico e a extensão dos olhos. Corridas, intervalos, comidas ao chão, a presa em seu palácio preto. Contrastes de criação…

Tudo isso corroborava nosso enlaço quando descobri que haviam deixado os postes do Jardim Botânico acesos. A claridade natural e um enigma, a plumagem do pássaro e um cachorro perdido que já vinha ao vento. O negro daquelas asas ficaram confusos quando me dei pelos postes, um descaso com o brilho do dia. O encontro com as vitórias-régias fora demorado, um longo desperdício de expectativas quando nos perdemos pelos conveses maltrapilhos. A planta já não era o foco, apesar de sua grandeza.

O cachorro latiu e me perdi da lavadeira, ficamos nós. Uma pluma ainda sobrevoou o fuço daquele bicho insano que me inquietou pelas tabelas. Não quis saber de conversa e esbravejei por pedra adentro. Quando retornei à pensão, tudo estava vazio. Estranhou-me prontamente a poeira e a ausência da tesoura no móvel antigo. Maria também havia sumido fazia algum tempo.

 

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/vit%c3%b3ria-regia-planta-vegeta%c3%a7%c3%a3o-563737/)

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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