Cristiano Fretta

Cinco escritores com quem eu gostaria de conversar. Parte I – Clarice Lispector.

Qual leitor que nunca teve vontade de um encontro mais próximo com seus escritores favoritos? Ver em carne e osso aquele a que, à distância, devotamos nossa admiração é uma forma de materializar a literatura em algo mais cotidiano, relacionando a estética, as linhas, o objeto livro, enfim, subordinando a obra de arte a uma individualidade que é capaz de criá-la. Em uma época de inúmeras lives e redes sociais, corresponder-se ou ter uma experiência digital do “ao vivo” com seu escritor favorito pode ser algo relativamente simples. No entanto, o que fazer com aqueles que já nos deixaram e agora habitam lugares onde o 4G não funciona? Nesta série, dividida em 5 partes, proponho não entrevistas ficcionais, mas sim como eu, Cristiano Fretta, como leitor, me sentiria pudesse me encontrar com os meus escritores canônicos favoritos. Já posso adiantar que seriam encontros regados a bares, restaurantes, praças, cafés e, claro, álcool. Me acompanha neste devaneio?

 

Clarice Lispector

Eu gostaria de falar com Clarice como quem se propõe a observar um diamante ou tenta sem sucesso resolver um enigma e fica preso não na vontade de solucioná-lo, mas sim na inexorabilidade do mistério. E que mistério aquela mulher! Há quem diga que ela não sorria em entrevistas para não perder a credibilidade como escritora, como que para dissociar sua escrita de qualquer coisa de “mulherzinha”, pois, afinal de contas, “mulherzinhas” estavam sempre sorrindo. Difícil dissociar, no entanto, no caso de Clarice, a figura do autor de sua obra. A mulher parece ser a sua própria obra que caminha.

Eu gostaria de conversar com Clarice em algum local aberto. Aqui em Porto Alegre temos a Redenção, o maior parque da cidade. Não sei por quê, mas penso que ela gostaria de sentar em algum dos bancos do local e comer talvez uma pipoca ou algodão doce enquanto observa as famílias fazendo piquenique no gramado. Ou melhor, sei por quê: com certeza esse ambiente poderia abrigar alguma personagem de A Legião Estrangeira ou Felicidade Clandestina, especialmente personagem criança.

Clarice surgiria de longe, segurando uma bolsa, vestindo um longo e bege vestido de mangas curtas. Eu me levantaria para cumprimentá-la e a seguir nos sentaríamos no banco um pouco sujo de terra, ela toda elegante no sentar-se, puxando um pouco o vestido na altura dos joelhos. Eu perguntaria como ela está e então as palavras surgiriam normalmente, no início um pouco monossilábicas, mas depois viriam as frases mais complexas, sempre marcadas pelo seu inconfundível sotaque. Ah, e claro, no meio de toda aquela conversa haveria muitos cigarros que eu, como asmático profissional, me veria obrigado a recusar, com medo de fazer-lhe alguma desfeita.

Conversaríamos por aproximadamente uma hora, e eu simplesmente deixaria que Clarice falasse. Nada de perguntas sobre seus livros ou mesmo elogios. Gostaria de apenas escutá-la para um dia contar à minha filha que eu bati um papo com Clarice Lispector na Redenção. Ao final da conversa, tímido e inseguro, eu pediria para tirar uma selfie com ela. Penso que aquele seu rosto algo pontudo e com uma peculiar simetria na região dos olhos ficaria perfeito para uma postagem no Instagram.

Eu me despediria dela com um breve beijo no rosto, sentiria o cheiro de cigarro misturado com perfume caro e diria que a gente marcaria um novo papo em breve. “Mas é claro, Crrristiano”.

Então Clarice Lispector se sumiria por entre os casais de namorados no início daquele fim de tarde de domingo na Redenção, carregando consigo aquela fortaleza toda em forma de mulher. Eu seguiria o meu caminho em direção à minha casa, onde, em silêncio e devoção, pegaria os seus livros em minha biblioteca – algo que acabei de fazer.

 

Fonte da imagem: https://pixabay.com/pt/illustrations/clarice-lispector-mulher-escritora-1345848/

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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