Cristiano Fretta

O livro e a vida – parte 2: “A Rosa do Povo”

Um ano longo, extenso, que desenharia caminhos definidores. Uma bolsa em um cursinho pré-vestibular em 2005 era, provavelmente, a única chance que eu teria de entrar na UFRGS. Era impossível pagar uma universidade: pai doente, desempregado. Entrar na universidade era a minha saída: trilhar um caminho novo. Linguagens. Ler. Escrever. E falar sobre isso: dar aula. Aquele era o ano que me faria professor. Isso, claro, se eu fosse aprovado no vestibular.

Por isso eu estudava o dia todo. Acordava, comia algo e me trancava no quarto para estudar. Comecei a entender muita coisa que eu não conseguia absorver no Ensino Médio. Sim, finalmente eu compreendia os períodos históricos da cultura grega: pré-homérico, homérico, arcaico etc. Aquela simples catalogação do tempo já me parecia algo fantástico.

O meu problema era as exatas. Meu cérebro não conseguia sentir prazer algum ao estudá-las e, por isso, nutri uma respeitável antipatia por todos aqueles números e fórmulas. Eu queria me dedicar às Leitura Obrigatórias. Que prazer estudar Literatura e acertar os exercícios de vestibular dos anos anteriores.

Eu já havia mergulhado em O Arquipélago, Camilo Mortágua e Espumas Flutuantes quando, da pequena biblioteca do cursinho, retirei a bela edição da Record de A Rosa do Povo. No T5, ônibus que eu usava para voltar para casa, eu tirei o volume da mochila para dar uma olhada nos poemas. Não era meu intuito lê-los no chacoalhar dos buracos das avenidas de Porto Alegre. No entanto, fui fisgado logo de cara pelo primeiro poema que vi na página aleatória que eu havia aberto. A flor e a náusea. A beleza da esperança frente àquela cidade cinza, frente a uma tal de “pós-modernidade”, algo que eu não entendia o que era – mas que eu sentia nas minhas caminhadas, nos barulhos dos ônibus e dos carros, na velocidade, na necessidade de eu planejar minha vida e enfrentar problemas. Ali estava eu, preso à minha classe e a algumas roupas, indo com meu amor pela Literatura pelas ruas cinzentas. Poderia me revoltar sem armas? É claro que eu poderia! Eu estava dando o meu máximo para que uma flor nascesse na rua, na melancólica e tensa rua que era a minha vida em 2005. Tive vontade de gritar “parem esse T5 agora, garanto que uma flor nasceu e furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Eu cultivava uma flor dentro de mim. E essa flor era a minha verdade. Essa flor era a minha transgressão em forma de escolha do curso superior – e isso me enchia de vida e esperança.

Ainda hoje, passados tantos anos, já com uma carreira sólida de professor, eu pego a edição da Record e me ponho a contemplá-la. Não a mesma edição que eu retirei do cursinho e devolvi à biblioteca dias depois após tê-la devorado inúmeras vezes no quarto, mas sim uma edição novinha que ganhei meses depois: quando uma tia perguntou o que eu queria de aniversário, não tive dúvidas de que eu queria um A Rosa do Povo só para mim.

Esse volume é, para mim, ali quase sumido na minha biblioteca, uma inspiração para se compreender de que tudo de ruim pode ter fim em nossas vidas. É necessário se agarrar à Rosa de Drummond. Ela é vida.

Fonte: foto do   autor.

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Cristiano Fretta

Cristiano Fretta é mestre em Letras pela UFRGS, músico, compositor e professor de Literatura e Língua Portuguesa em escolas privadas de Porto Alegre. É autor das obras "Chão de Areia", "Tortos Caminhos", "A luz que entrava pela janela" e "Crônica de um mundo ausente". Também colabora com as revistas digitais Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo, Passa Palavra e com o jornal Extra Classe. Nasceu e mora em Porto Alegre

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