Carina Lessa

Um personagem independente

 

Há uma lentidão na casa. As teias, no teto. O ventilador, constantemente assediado pelas descargas elétricas, entremeia luzes desequilibradas. O corpo ficou cansado e não sabemos o que dizer. Vejo um homem de braços dados com o pai, caminha arrastando a bengala. Uma voz entra pela janela, zumbido a lembrar da vida?

Sinto vontade de fumar, nunca experimentei um cigarro. A vontade não é nova, me vem nestes momentos vãos em que nada se diz.

A carne parece flácida e estoura varizes enunciando uma tragédia. Certa cantoria infantil me invade em cadência apavorante. Comprime o peito. As tabelas se acumulam no notebook. Colunas e mais colunas com números subtraídos do que nunca vi, vidas a menos, acúmulo de energias mortas, descarregadas.

A cabeça treme. Um pigarro sufoca enquanto a fumaça gira em espiral pelo ar. Uma sintaxe esquisita e camarada pede para seguir caminho, alarga um espaço pouco inaugural. O rumo é duvidoso, porque os olhos estão pesados. As pupilas? Apagadas.

– Sim, parece mesmo coisa de rótulo oficial. Reduz o valor do homem, põe agasalhos nos restos de lágrimas sobreviventes.

Uma mulher acena com educação desnecessária somente porque me viu pela fresta da janela.

São cinco da manhã. Arregaço as mangas e deslizo as cortinas. Nenhuma ideia me atazana mais do que a habilidade com que aquela mulher me faz revirar os papéis mesmo de longe. Percebo a formação de fotografias antigas, realizam uma exposição de nódoas. O desfile das horas me deixou em profundo sono, daqueles em que homens se movem em cavalos resistentes a guerras e indiferentes à gravidade do acaso.

O espectro. Sentado no sofá paralisava mil pensamentos esculpidos num instante. Olhava o quadro à distância e pincelava toda qualidade de entranhas dormidas, de narizes inalados pela própria fome do falso. O relógio já batera por quatro vezes. Até que por fim pôs-se de pé.

Ainda pequeno, Thomas aprendera com o pai, dono de um distinto antiquário, que era preciso escolher as melhores peças, observar cada detalhe e dispensar qualquer imperfeição. Quando tinha vinte e sete anos o pai falecera. Herdado o antiquário, verificou em cada peça rara um quê de defeito. Tudo ao lixo. Casa fechada.

De pé, pela pequena brecha das cortinas, há dias Thomas identificava as gargalhadas de beleza reconhecida pela mulher. Olhos grandes de um brilho acinzentado, cabelos moldurados de um castanho torturador. Os passantes exibiam narizes que equilibravam as curvas lisas do corpo indolente.

O ruído do excesso de orgulho de Ana transtornava. Saiu de casa. As pessoas estavam escuras até desaparecerem. As casas desnorteavam murmúrios, em socos, como se espreitassem os limites do corpo. O silêncio.

Thomas pegou a menina e lhe contraiu a boca. De volta ao abrigo, amarrou-a no sofá e com a faca deslizou pequenos riscos no rosto e nos seios que o afrontavam. Pegou das tintas e voluptuoso pôs-se a pintar o indecifrável.

Os olhos da mulher aspiravam ao desespero. Diante do espelho oferecido por Thomas, retorciam-se incalculavelmente. Um quê de defeito!

O quadro não descartava qualquer soluço de dor. Antecedia qualquer pronúncia. O intocável soluço da arte! Eis a perfeição!

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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