Carina Lessa

Primeiro movimento

Um homem vagueia sozinho. As folhas das árvores estão amareladas e o vento não para de balançá-las. Muitas razões me deixam aqui sentado. Fico no banco, observo. Misteriosamente, o corpo percorre o horizonte, parece não chegar à lugar nenhum. De repente, uma bolada na perna.

Uma criança corre, gargalha, tropeça, cai, levanta, sorri, me olha.

Não há nada para recordar, tenho as melhores histórias, mas não há nada para recordar.

A chuva começou. Por dez minutos, já não ignoro as crianças correndo. São previsíveis. Pulam na lama enquanto a grama esquartejada salpica os pedaços grudando nos chinelos e nas pernas morenas.

Não movi o corpo do banco. Daqui imagino caminhar com dificuldade. A mala arranha suas rodinhas no chão, agarram muitas vezes. Não é possível separar lágrimas e chuva. O homem, agora, entremeia uma sombra. Fitaria os meus olhos? Ficou perdido.

Um farol pisca, chama a atenção também das crianças. Se eu pudesse voltar, deixaria toda a rudeza, mas tenho histórias inventadas que estão me destruindo. Eu jurei que eram verdade, mas segurei uma mão vazia.

Um farol pisca e tento adivinhar se é o carro que me espera. As folhas amareladas começam a despencar com o peso da chuva. Imediatamente já se transformam em risos infantis.

Estou dormindo pesado, são só as folhas correndo dentro de mim enquanto arrasto a mala com força. Agarra na pedra e logo caio sem muito ânimo de levantar.

As melhores coisas acontecem sozinhas e vivem deslumbradas na nossa imaginação. O joelho fica ralado, o sangue escorre e, num segundo, dissolve-se em água e já é pura terra fertilizada.

Enquanto as pálpebras tombaram pesadas, assustei-me ao perder o homem de vista. Ele me atrai e me manda de volta. O que eu faria sem o teu sarcasmo?

Escuto um grito abafado e vejo as crianças correndo em outra direção.

Estou tonto. Carreguei uma mala pesada, e fui envolvido por uma história que nunca existiu. Por que segurava minha mão?

Enrolei mil fios de linha no dedo. Vi muitas vezes as pipas dançando no ar… de repente as mãos ficaram vazias e o sangue escorreu pelos cortes de cerol. Quem espalhou o líquido?

Não sei se perco ou se estou vencendo. Não existiu percurso, o homem nunca acredita no sentimento mútuo.

Os faróis ainda piscam. Julgo ter desemperrado as rodinhas da mala. Lembro-me, escutando risadas infantis e distantes, de que não é preciso muito para matar alguém. Um leve tom de insignificância para as suas ações já serve de cerol cruel e conflitante. Vejo a pipa caindo à medida que sangra a ferida.

É impressionante o que um farol é capaz de produzir num corpo estranho. O coração acelera e passa a dizer frases confusas com muita convicção.

Desisto da mala.

A alma se curaria ao lado das crianças. As folhas das árvores estavam amareladas, mas preciso preencher a memória com rancores para que não me faltem momentos infinitos.

Nota: link para escutar Moonlight Sonata, de Beethoven https://www.youtube.com/watch?v=W0UrRWyIZ74

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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