Erick BernardesHISTÓRIAS DE ARARIBOIA

Engenho do Mato e a ancestralidade sergipana no Quilombo do Grotão

Série: Histórias de Arariboia

Saíra-sete-cores (nome científico: Tangara Seledon)

Esta história chegou pela narrativa do meu amigo José, morador há décadas do Engenho do Mato. Enquanto comíamos algumas carambolas juntos e conversávamos sobre a vida, a sua filha de 10 anos oferecia uma banana madura como refeição matinal ao passarinho selvagem popularmente chamado de saíra-sete-cores. Animalzinho lindo e solto na mata, cena colorida, típica de inspiração poética, fauna preservadíssima — e o cronista aqui precisou se segurar para não escrever poesia em vez de matéria cultural. E vamos à narrativa, conheça essa preciosidade fluminense!

Quando se fala em Quilombo do Grotão, importa ressaltar ao leitor o quanto de preciosidade histórico-cultural existe nessa parte de Niterói. Exato, localizado no sub-bairro Engenho do Mato, região pertencente a Itaipu, o espaço foi originalmente fundado por um sergipano, o agricultor e descendente de escravizados Manoel Bonfim. De acordo com um site de ecoturismo niteroiense, a verdadeira história do Quilombo do Grotão começa nos anos de 1920, quando o senhor Manoel Bonfim veio do estado de Sergipe e se estabeleceu como colono em uma das fazendas de abastecimento na Serra da Tiririca.

Sabe-se que a diminuição das atividades da fazenda fez com que a antiga dona da propriedade fracionasse as terras e as entregasse a um grupo fiel de colonos — e foi a partir daí que tudo começou. Registros apontam que, com os colonos estabelecidos já na década de 60, a propriedade precisou novamente ser dividida. Isso mesmo, há quem garanta que a segunda partilha de terrenos ocorreu por causa da expansão demográfica. Exato, inevitável a valorização do espaço, mais gente querendo comprar terra por ali. E, claro, tudo isso chamou atenção: os especuladores de imóveis salivaram com a oportunidade. Ambições aos montes. Movimento crescente da economia. Impossível não haver o tal perigo do crescimento desordenado. Inflação imobiliária, fenômeno sobremaneira instantâneo, cuja transformação demográfica, por sorte, provocou logo a ação do Estado. Resultado? O caso culminou com uma determinação oficial digna, exatamente, ordem jurídica. Daí por diante, as mesmas terras onde se encontra atualmente o Quilombo do Grotão continuaram sob a tutela da família Bonfim. Ação legal, atitude das melhores, preservação do bioma local, deu certo. O lugar ficou mesmo sob a tutela dos antigos moradores.

Segundo um importante artigo acadêmico, a realidade das atividades na “Comunidade Negra do Grotão, na região Oceânica de Niterói/RJ, revela geografias históricas de lutas ocultadas invisibilizadas e espalhadas por todo o território brasileiro, marcadas por tensões sociais que são inerentes ao processo de formação da sociedade brasileira” (MONTEIRO, 2015, p. 33).

Como se vê, a questão familiar é mesmo algo mais do que forte no âmbito quilombola. Hoje, a família do antigo sergipano atravessa a quinta geração, mantendo a preocupação em preservar a natureza da Serra da Tiririca. A cultura negra e a memória merecem, a estrutura familiar de gerenciamento do Grotão reforça a resistência das comunidades tradicionais e amplia os horizontes de troca cultural. Como se vê: “No local, rústico e embrenhado na mata da Serra da Tiririca, há uma espécie de cabana que abriga mesas longas e bancos de madeira onde são servidos a feijoada de sábado e qualquer outro tipo de refeição que haja em dias de festa. O ambiente atualmente é usado para eventos do próprio quilombo, no intuito de arrecadar verba para melhorias que atendam às necessidades da comunidade, e também já se estuda a abertura do espaço para eventos externos, como por exemplo casamentos e festas de pessoas que não sejam da comunidade” (fonte: https://exploreniteroi.com.br/explore-quilombo-do-grotao/).

Viu aí, caro leitor? Quando a comunidade científica e a tradição local dão as mãos, a coisa acontece. Preservação, sim, agricultura sustentável, não é à toa que a cidade de Niterói se fez conhecida pela qualidade de vida. A Universidade Federal Fluminense (UFF) vem exercendo estudo importantíssimo acerca da maneira como as gerações se desenvolvem e, acima de tudo, convivem harmonicamente em seus espaços. Foi só a partir dessas pesquisas que a noção de pertencimento, e também orgulho, passou a se desenvolver dentro do Quilombo do Grotão. Os moradores e descendentes do fundador Manoel Bonfim se conscientizaram ainda mais: “— somos quilombolas, e com muito orgulho!” — e tudo isso a potencializar vontades de conservar a memória dos antepassados.

Referências:

MONTEIRO, Gabriel Romagnose Fortunado de Freitas. O quilombo em questão: sobreposições e insurgências a partir do conflito socioambiental e territorial da comunidade negra do Grotão no Parque Estadual da Serra da Tiririca. 2015 Disponível: http://periodicos.uff.br/ensaios_posgeo/article/view/36289 Acesso: 01/mar/2020.

https://oglobo.globo.com/rio/bairros/quilombodo-grotao-em-niteroi-passa-por-fase-de-reconhecimento-do-minc-19388370

https://exploreniteroi.com.br/explore-quilombo-do-grotao/  Acesso: 01/mar/2020.

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Erick Bernardes

A mesmice e a previsibilidade cotidiana estão na contramão do prazer de viver. Acredito que a rotina do homem moderno é a causadora do tédio. Por isso, sugiro que façamos algo novo sempre que pudermos: é bom surpreendermos alguém ou até presentearmos a nós mesmos com a atitude inesperada da leitura descompromissada. Importa (ao meu ver) sentirmos o gosto de “ser”; pormos uma pitadinha de sabor literário no tempero da nossa existência. Que tal uma poesia, um conto ou um romance? É esse o meu propósito, o saber por meio do sabor de que a literatura é capaz proporcionar. Como professor, escritor e palestrante tenho me dedicado a divulgar a cultura e a arte. Sou Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ e componho para a Revista Entre Poetas e Poesias — e cujo objetivo é disseminar a arte pelo Brasil. Escrevo para o Jornal Daki: a notícia que interessa, sob a proposta de resgatar a memória da cidade sob a forma de crônicas literárias recheadas de aspectos poéticos. Além disso, tenho me dedicado com afinco a palestrar nas escolas e eventos culturais sobre o meu livro Panapaná: contos sombrios e o livro Cambada: crônicas de papa-goiabas, cujos textos buscam recontar o passado recente de forma quase fabular, valendo-me da ótica do entretenimento ficcional. Mergulhe no universo da leitura, leia as muitas histórias curiosas e divertidas escritas especialmente para você. Para quem queira entrar em contato comigo: ergalharti@hotmail.com e site: https://escritorerick.weebly.com/ ou meu celular\whatsapp: 98571-9114.

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