Valdeci Santana

Sob O olhar de um defunto

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/cerimonia-evento-velorio-funeral-7317683/

Sob o olhar de um defunto.

Não sei bem como, onde ou quando. O fato é que morri.

Só pode ter sido repentino, pois, não me lembro de sofrer de nenhuma moléstia. A única doença que carrego desde nascença é a pobreza. De toda forma, já não me interessam os meios, pois, já estou no fim mesmo.

Até que estar morto não é tão ruim assim. Para falar a verdade, já estive em situações bem piores. A cama lá do meu barraco, repleta de calombos e percevejos é bem pior do que esta caixa de madeira que sufoca meu corpo.

Que velório fuleiro este meu. Um cheiro de desinfetante e naftalina danado. Povo todo se abanando, uma tristeza danada. Espero que meu caixão seja de madeira boa pelo menos.

Nunca imaginei tanta gente no meu velório, e desconfio que seja engano. Vai que de repente tem alguém importante sendo velado nas adjacências, só pode. A maioria aqui nem conheço.

A turma do botequim do Nelson não faltou. Aqueles ali são amigos de verdade. A maioria a cirrose há de derrubar brevemente. Estão passando um a um, colhendo moedinhas para a cachaça que usarão para “beberem o defunto”. Os sacanas dirão que é um acordo que temos. Mentira! É somente pretexto para se embriagarem, mas, não posso criticá-los, pois, já “bebi” muitos defuntos por ai.

Minha irmã acaba de chegar, com aquele meu cunhado folgado. Espera! Aquele é meu relógio. O maldito não esperou nem eu fechar os olhos. E as crianças. Pestes de sobrinhos endiabrados. Correndo em torno dos cavaletes, logo derrubam este caixão. Até que não seria má ideia poder assombrá-los a noite. Tentador.

A Maria está do meu lado, com sua mão redonda enfiando um tufo de flores no meu pescoço. Umas flores fedidas que só. Oh mulher que reclama! Já criticou o calor, a posição da coroa de flores, a roupa curta da minha sobrinha, até a cor do meu terno a encrenca da mulher criticou.

—Te falei Anésio! Vá ao médico. Mas, você me escuta? Não. Tempo para andar atrás de rabo de saia o senhor tinha, mas, cuidar da saúde…

Meu Deus! O enterro demora?

A jararaca da minha sogra esta olhando com aquela cara de sonsa. E eu que pensei que esta velha fosse primeiro. Pelo visto, vai atazanar muita gente ainda. O lado bom de estar morto é ficar livre disso.

—Você é jovem minha filha! Deus há de enviar uma pessoa boa. E cá entre nós, este traste não valia muita coisa. Talvez seja um livramento.

Oh velha do diabo!

Perdão Deus. Não é um momento adequando para mencionar o pé torto. Embora, pensando cá com meus botões, talvez não seja prudente rejeitar o inferno, sem ter certeza de que irei para o céu. Falando em céu, cadê os anjos?

Velório geralmente não é nada animado, mas, o meu está um porre danado. Alguns chegam bem perto e espicham os olhos para meu lado. Outros falam frases do tipo: “Deus sabe o que tá fazendo”, “ele está descansando”, “Vai para um lugar melhor”. Bobagens!  E eu aqui morto de tédio.

Nunca passou pela minha cabeça que a morte aprimora nossa percepção. De repente, estou mais observador. Mais calmo até. Embora, com uma coceirinha chata nas partes íntimas. Que produto este pessoal do serviço funerário usa na gente? Certeza que é coisa de baixa qualidade. Também, é bem provável que a muquirana da minha sogra convenceu a Maria, de optar por um serviço dos mais medíocres. Este terno já deve ter passado em tanta gente. Talvez esteja precisando mais de um enterro do que eu.

O padre esta falando tanta coisa boa a meu respeito, que desconfio que ele tenha se enganado. Dizendo que fui um homem trabalhador! Jesus! Quer sujeito mais vadio que eu. Descansei tanto em vida, que nem seria necessário um descanso eterno.

O Joaquim bicheiro esta com cara de poucos amigos. E não é por menos, morri lhe devendo dinheiro.

Agora a coisa desandou. Zenaide acabou de chegar. Sorte que estou mortinho da Silva. Meus filhos já correram a prevenir a mãe para evitar baixaria. Amante e esposa se entreolham, torcem os narizes e soltam um resmungar de canto de boca. Zenaide com seu ar debochado e suas roupas espalhafatosas se aproxima com um perfume tão forte, que mesmo morto, com um tufo de algodão nas narinas, deu vontade de espirrar.

—Vou logo te ver, meu amor.

—Ah se vai! –Branda Maria ofendida. —Se não se escafeder daqui, garanto que estará com ele hoje mesmo, sua rapariga.

Meu cunhado folgado corre a confortar Zenaide e lança-me aquele olhar sacana, de quem vai dar o bote. Miserável.

E quando eu penso que não pode ficar pior, começa a chover. Só por Deus mesmo. Enterro de filme sempre tem uma chuvinha rala, que dá até um charme. Mas, no meu caso, virou um lamaçal desgraçado. Uma tempestade dos infernos. A enxurrada derrubou as bicicletas, levou até a garrafa de cachaça e um chinelo dos parceiros do botequim do Nelson. O vento ergueu a saia da Zenaide, um sujeito fincou o olho, a esposa flagrou e virou um barraco danado. Logo estava todo mundo brigando. Aproveitando a brecha do rebu, os jovens endiabrados da família de Maria, carregaram meu caixão para fora, temendo que alguém o derrubasse durante o empurra-empurra.  E tão grande foi meu azar quando, num descuido, a enxurrada se adensou e arrastou minha caixa fúnebre. E pouca gente notou meu caixão deslizando sarjeta afora, e eu, morrendo de rir por dentro.

 

 

 

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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