Valdeci Santana

Pela janela

Pela Janela.

Eu estava na janela quando a infantaria nazista desfilou seu patriotismo presunçoso pelo calçamento. Futuros cadáveres que tencionam invocar uma criatura que se alimenta de sangue. Enquanto uma nação inflamada, estende os braços, quais baionetas adiante dos corpos, e reverenciam em uníssono o Führer:

Heil Hitler”

                Vejo a marcha elegante dos veteranos da Sturmabteilung (Divisão de assalto), soldadinhos de chumbo para quem a vida só tem propósito enquanto se há conflitos.

Bandeiras estampadas com enormes suásticas tremulavam no mesmo vento, que mais tarde nos trariam as fuligens das destruições.

Debruçando minha existência na janela, furtei, num dia nublado, tão cinza quanto um véu sepulcral, um tal Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, sendo anunciado pelo jornaleiros que gritavam suas manchetes nas calçadas, enquanto, por cima do meus ombros, eu ouvia a leitura paterna, que em voz alta destacava as céleres frases do sujeito:

“Guerra é a mais simples afirmação de vida”

“Primeiro armas, depois a manteiga!”

Pela janela, dedicado qual um sentinela, acompanhei o vai e vem de simpatizantes da ideologia antissemita, levando para seus lares a bandeira alemã, e variadas molduras onde o Führer Adolf Hitler exibia olhar penetrante. Um olhar sombrio em contraste com um bigode esquisito. Não gosto dele! Não gosto do mal que ele propaga! Odeio seus discursos antissemitas. Mas, meu pai me faz jurar que jamais direi isso a quem quer que seja. Diz que para o bem de nossa família, é necessário que sejamos fieis nazistas, mesmo que discordemos intimamente da causa.

Deutschland über alles” Nos fazem repetir no colégio. A Alemanha acima de tudo. Querem que obedeçamos cegamente aquele austríaco que chama nossa pátria de mãe.

Através da mesma janela, de onde eu espreitava o cotidiano, aprendi que deveria odiar os judeus, mesmo que para mim não fizesse qualquer sentido. Mesmo que doesse conviver com as hostilidades gratuitas contra aquela gente. Meu pai me consola, e diz que não seremos pessoas ruins se não os odiá-los com a mente e o coração. Seriamos dedicados atores. Vi a estrela de Davi sendo pintadas de amarelo em suas portas, acrescentadas de insultos como: “Jüdischen pest” (praga judaica) ou “Jüdischen Krankheit (doença judaica)

Pela janela acompanhei todos os tristes atos de vandalismos da Kristalnacht (noite dos cristais) e achei lamentavelmente apropriado o nome, já que as vidraças do comércio judaico se resumiram exatamente a estilhaços.

Eu estava na janela, numa noite gelada, quando se deu a “queima dos livros”, onde os alemães se juntaram entorno de imensas fogueiras, erguidas em praças publicas, alimentadas com a literatura judaica, que era avidamente devorada. Vi como aqueles olhos nazistas refletiam a chama da guerra e tive medo.

Vi tropas marchando para a morte nos campos de batalhas, onde jovens juravam retorno a suas famílias e prometiam não morrerem nas trincheiras. As ordens de seus generais eram claras! Que empregasse suas vidas em prol do terceiro reich. E assim eles faziam, morriam um a um, em nome de Hitler. Vi sujeitos pacíficos deixando suas vidas comuns para se tornarem maquinas de guerra. Ainda não estavam prontos para morrerem pela causa, mas, quem queria saber?

Chorei disfarçadamente na janela, quando acompanhei a marcha silenciosa dos judeus para os campos de concentração. O aspecto de seus corpos maltrapilhos e frágeis assombraram meus sonhos por várias noites. A imundície de suas vestes só não era maior que a podridão de quem os levava para o extermínio. Seus rostos resignados pela certeza da morte afetavam meu espirito jovem.

Pela janela, eu, menino nazista, não por opção, mas por imposição, acompanhei os avanços diários do terceiro reich. Festejado por um delírio coletivo.

Foi daquela mesma janela, escancarada para o mundo, que acompanhei as baixas que se tornaram frequentes. Assim como o desfile de aviões que vomitavam bombardeios acima de nossas cabeças. Vi, pela primeira vez, meu povo inseguro, correndo aos abrigos antiaéreos, exibindo os mesmos traços do medo, que vi nos rostos judeus. E isso me trazia alegria, mesmo sabendo que nossa casa também estava ameaçada, mas, era justo.

Vi quando o fim da guerra foi anunciado. E como que se despertasse de um sono profundo, as pessoas fora lentamente se despindo daquele desejo por guerra. Na verdade, elas já estavam fartas demais. Os conflitos cobraram um valor que elas jamais imaginavam pagar. Vi o regresso de homens cabisbaixos, exibindo as perpétuas cicatrizes do combate. Soldados desorientados sem saber para onde marchar.

Pela janela, vi minha mãe fraquejando no portão, num pranto compulsivo diante de um mensageiro de guerra, que lhe trazia uma medalha, ao invés do meu pai que, nesta mesma janela, vi sendo arrastado ao propósito nazista, para o combate no front.

Fonte da imagem: https://www.pexels.com/pt-br/foto/estranho-misterioso-assustador-vidro-9875715/

 

 

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Valdeci Santana

Escritor. Autor de 4 romances: "As palavras e o homem de bigode quadrado", "A prima Rosa", "Dia vermelho" e "O rei da Grécia" Palestrante, contista e apresentador no programa #Cultura Tv Batatais

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