Tito Dassil

O menino que vendia sonhos

Canela é um menino de dez  anos, que tem a pele preta,  as canelas russas, o cabelo duro e os olhos negros. Mora na favela do rio seco, numa encosta que pode desabar na próxima chuva. Ele já aprendeu que em dias de chuva forte, se a sirene tocar, deve correr para o abrigo que fica num colégio público perto de sua casa.

Ele  é o craque do time de meninos da favela, joga com a dez, faz gol de bicicleta e adora poesia.

Aprendeu a ler aos quatro anos com a avó, que o cria, dona Justiniana, ¨vó Niana do Gongá¨, mãe de santo famosa na favela, que cura espinhela caída, olho gordo e casamentos em crise. Desde então, Canela começou a ler e não parou mais.

Nunca teve pai.

A mãe trabalha na casa de dona Marise Hoffman em Ipanema e só volta de quinze em quinze dias, quando trás muita saudade para afagar o coração e comida para confortar o bucho.

Lá de cima, enquanto solta a pipa ou joga um futebol com os amigos, ele consegue olhar os tetos dos prédios mais altos da cidade.

Bolota, Betinho e Cafu são os amigos preferidos de Canela, sobem as escadarias, correm nos becos e vielas e lambuzam os uniformes da escola.

Mas o que ele gosta mesmo na sua meninice de menino pobre, é de rimar lé com cré, e de contar com outros olhos as aventuras da favela. Tem pensamentos infantis de ver aquela realidade mudar.

A casa da minha mãe

O chão da gente

Os amigos do campinho

 

O céu daqui de casa

Sem nada, mas contente

Meu mundo, meu caminho

 

Os meninos adoravam, apenas Cafu, dono de uma amargura profunda não entedia e não se deixava envolver por climas de candura.

_Não sei como gostar dessa desgraça, não temos nada pra rir nesse morro…

Bolota se derretia ao ouvir o amigo poeta e estava sempre ranzinzando com Cafu, apesar de amigos, os dois não se bicavam.

_Você é que é muito chato Cafu. Muito legal Canela, assim que eu aprender a escrever quero ser igual a você, fazedor de poesia.

_Ah! Eu acho legal, mas quero ser como mãe Niana, que fala com Deus e tem poderes, disse Betinho.

_Se é assim, quando eu crescer eu quero ser da boca pra mandar no morro, disse Cafu.

_Eles não mandam no morro, disse Bolota.

_Mandam sim, eles dão até tiro.

_Ah! Eu não acho não Cafu, eles morrem logo, nem crescem, disse Canela.

_Eu gosto quando o Canela escreve essas coisas, os barracos ficam com cor, até as valas ficam bonitas, falou Betinho.

_Lá vem os moleques da boca, vão bora! Vão bora!

Uma vez a mãe levou Canela para fazer um exame e ele precisou dormir na casa de dona Marise em Ipanema, antes de dormir ele ficou conversando com os filhos dela, dois moleques amarelos feito margarina. Falou do campinho de poeira e lama, das casas dependuradas e dos tiros.

_Lá tem bandido? Perguntou Arthur, o filho mais velho.

_Não, mas tem os moleques da boca que andam armado, falou Canela.

_Então tem, se anda armado é bandido, disse Bernardo o mais novo.

_Claro que não, a polícia tem arma e não é bandido, retrucou Canela.

_Mas a policia pode porque tem uniforme, falou Arthur.

_Meu amigo da escola falou que na favela só tem bandido.

_Isso é mentira. Falou Canela fechando a cara.

Tiraram seu sangue e lhe deram uma espetada na bunda que doeu durante uma semana.

Minha rua é feita de lama

Que derrete quando chove

E que vira pó

Em dias de sol

 

Minha rua tem forma de degraus

Que cansam as pernas da minha avó

E sobe, sobe, sobe

 

Minha rua começa no asfalto

Desenha pra o alto

E termina no colo de Deus

 

As canelas russas de Canela deram origem ao seu apelido, as peladas na rua, no campinho de barro deixava-o de pernas empoeiradas, a mãe até passava um óleo nas pernas do guri, mas ai já era tarde, quando a bezuntação fez efeito, ele já tinha se tornado Canela.

Na escola chama a atenção devido sua tão pouca idade e seu interesse pela literatura, principalmente pela poesia. Tem decorado poemas de Vinicius de Moraes, Mario Quintana e Castro Alves, sempre que esta sem atividade esta com um livro em algum canto, alguns acham isso fantástico.

Canela não liga para tablets, celular ou computador, ele gosta de sentir a textura das folhas, o cheiro do tempo nos livros, perceber os anos nas capas e tentar entender a idade das palavras. Ele não sabe de onde vem isso, ele só sabe que sabe que sente. Naquele universo, encastelado lá no alto, ele é alguém pronto para contrapor o sistema, subverter a ordem natural daquele mundo, apesar de tão miúdo, mesmo sem ter consciência.

Os livros  ajudam a entender a mecânica daquele lugar, porque não tem pai, porque a mãe nunca tem tempo pra ser mãe, porque os moleques da boca morrem com pouco mais idade que ele, porque não tem água e saneamento básico, porque alguns pais dormem bêbados na calçada, e porque em dias de tempestade alguns barracos descem o morro com telhado e tudo e vão parar na porta dos magnatas lá no asfalto,  não entende como, mas os livros lhe dão palavras que não encontra ali.

Certa vez, quando descia pela escadaria da barreira indo para a escola, cruzou com um moleque magrelo feito vareta de pipa, era um mulato, cabelo aparado com um desenho na nuca e os olhos esbugalhados, andava com pinta de vagabundo, carregava no peito uma marra de autoridade e nas costas um fuzil atravessado. Canela já o conhecia da beira do campo de poeira e lama, quando estava a sua frente, parou e perguntou.

_Posso te fazer uma  pergunta?

_Fala aí Canela, que que tá pegando menor?

_Você é mocinho ou bandido?

 

Os meninos da minha rua

Sofrem de uma triste cegueira

De uma surdez tão forte

E por viverem no abismo à beira

 

Mesmo tão nítida sorte

Não escutam os avisos

Nem enxergam a morte

Certa vez, quando se preparava para ir dormir, num daqueles dias em que a mãe estava em casa, um intenso tiroteio começou. Ali, jogado no chão abraçado a ela, a estupidez daquelas balas rompiam-lhe os tímpanos e se alojavam no coração. Toda vez que o dia seguinte a um acontecimento como esse, que era frequente, chegava, ele desconfiava que não era mais a mesma pessoa, era uma sensação meio fantasmagórica, mas tão real que não comentava com ninguém, achava que se tratava de uma loucura de sua cabeça, ia dormir e acordava menos criança, menos humano.

Era como naqueles dias que acordava e no caminho para a escola junto com Bolota, Betinho e Cafu se deparava com um corpo de um daqueles moleques da boca, coberto por um plástico preto e umas velas ao lado, um carro de policia, e sempre, sempre tinha uma mulher sentada próximo chorando. Do alto dos seus dez anos não entendia, mas nesses dias ficava triste e tinha muita vontade de ler e escrever poesias. Nessas ocasiões o morro ficava cheio de gente da televisão, era um alvoroço só, Canela e os meninos adoravam ficar atrás dos jornalistas que estavam gravando para aparecer na TV. Nesses acontecimentos muita gente ficava famosa, dona Araci já apareceu cinco vezes no noticiário, dizem que ela já saiu até na primeira página de um jornal, já os moleques que estavam embaixo do plástico, esses eram os esquecidos naqueles dias de festa, apenas aquela mulher sentada no meio fio iria se lembrar dele.

Canela entrou em campo naquele dia querendo muito ganhar dos guris das Guíndias, o campinho de poeira e lama ficou pequeno para as diabruras aquele moleque de canela russa. Lançou Betinho que tocou para Cafu que deu uma trombada num garoto parrudo do time deles, foi no fundo e cruzou na medida, qualquer um outro teria metido a cabeça, mas Canela era diferenciado, dominou no peito, deu um lençol no moleque, chapelou bonito, e sem deixar a bola tocar no chão bateu forte, pegou na veia, saco! Nessa hora que os caras da TV tinham que estar ali. Deu um soco no ar, correu até a beira do campo onde não havia ninguém e abraçou o pé de mamona que sacudiu com o entusiasmo de um torcedor fanático, afinal, fora testemunha ocular daquela pintura.

Certa vez sua professora o chamou .

_Porque você não faz um livro artesanal com suas poesias e vende aqui na escola?  Ou até mesmo na sua comunidade.

Ela lhe ensinou como fazer.

Canela escreveu a mão as poesias que fez especialmente para aquele livro, prendeu as folhas do jeito que a professora tinha explicado. Conseguiu fazer quinze livros com as folhas que ela lhe dera. Vendeu todos na escola.

Com o dinheiro arrecado comprou uma resma de folhas, escreveu novamente e fez mais trinta que vendeu rapidamente só na escola.

Ficou famoso no colégio, virou celebridade, durante o recreio algumas professoras e alunos o procuravam.

_É você que é o Canela?

_Sim, respondia ele.

_Me falaram de você, quero comprar um livro seu. Dizem que suas poesias são lindas.

Tempos depois, tia  Marcela, a mesma que lhe deu a ideia e era sua maior incentivadora o chamou mais uma vez.

_Parabéns Canela, sua poesia faz grande sucesso aqui na escola, acho que posso te ajudar a melhorar essa idéia.

_Como?

_Faça as poesias e me traga, vou imprimir, tenho um amigo que vai encadernar, já falei com ele e esta disposto a ajudar.

O garoto ficou eufórico, estava muito empolgado com aquele projeto, foi para casa com Betinho, Cafu e Bolota apertando todas as campainhas e chutando todas as latas que via pelo caminho, ao chegar sua avó o aguardava.

_Que negócio de livro é esse menino? E de onde tem tirado dinheiro?

Canela contou toda a história a sua avó, que também ficou muito empolgada e feliz, ela sabia do potencial do neto e do dom que ele possuía com as palavras.

 

Canto a alegria sem qualquer explicação

Sem qualquer tipo de conceito

Porque ela mostra quem sou

E de onde venho

 

Que  mostra a beleza e simplicidade

Do tudo que sou

E do nada que tenho

 

Canto a lindeza do feio

A limpeza do sujo

A pobreza do meio

E a realidade que não fujo

 

Pois sou a fruta mais bela

Dessa minha horizontal cidadela

Que pra uns é medo, violência e vela

Pra outros é casa, lar, favela

 

Canto a pobreza da minha terra

Para que as riquezas nos alcancem

Para que os deuses não nos esqueçam

Para que os homens não se cansem

 

Canto porque me faz contente

Canto pra meu passo ir em frente

E o futuro me faça gente

 

Mais uma vez tia Marcela o procurou com uma nova ideia para o garoto.

_Porque você não vende seus livros também no seu bairro? Contei sua história para um amigo que é dono de uma gráfica e ele vai doar quinhentos exemplares para você começar a vender seus livros além dos muros do colégio.

Demos pulos de alegria abraçados.

Com a ajuda de seu Benedito, seu Bené, como era conhecido, que permitiu que pusesse uma banca feita de caixotes em  frente a sua padaria, começou a vender na comunidade após as aulas.

Em pouco tempo ficou famoso nas redondezas como o menino que vendia livros.

Vendeu todos os exemplares que ganhou em pouco tempo, com o dinheiro que arrecadou e com a ajuda de tia Marcela encomendou outro lote de livros que também foram vendidos com a mesma rapidez.

O sucesso do menino poeta se espalhou como rastro de pólvora.

Certa manha, num dia que não teve aula, dois rapazes da Rádio Comunidade, uma rádio que atendia a redondeza bateu na porta de sua avó, eles queriam fazer uma matéria com o menino poeta. Marcaram o dia e sua avó o levou até a rádio.

Canela ficou encantado com aquele ambiente, era pequeno, mas a mesa de som os microfones, ouvir sua voz saindo na caixa que estava a sua frente parecia meio mágico. Recitou algumas poesias e respondeu perguntas que se faz a uma criança. O menino dos olhos pretos, do cabelo duro e das canelas russas, parecia estar brotando do meio de sua gente. Quando falavam dele, seus ouvidos pequenos ouviam e parecia que estavam falando de alguém que não era dali, como quando ouvia falar dos artistas na televisão, quando a gente chora, mas é tão distante. Ele não sabia porque, mas no seu coração, essa sensação de distância da sua comunidade, do seu habitat, lhe doía. Era cria do morro, da favela, e sua poesia revelava isso, quando escrevia poetizando a pobreza, desejava a riqueza ¨praqueles¨, quando falava da morte, sonhava com a vida, quando falava da guerra, queria a paz.

Respondeu que rimar para quem mora na favela é muito fácil, e para um professor que ligou, e perguntou que apesar de tão novo, de onde vinha tanta inspiração e sabedoria, disse;

_Você sabe que existe amor, nunca viu

mas conhece a dor

você sabe que não tem nada, a não ser o nome

a não ser vontade, a não ser a fome

a não ser cansaço, a não ser preguiça

a não ser a injusta distribuição da justiça.

Cresceu e continuou assim, sem entender de onde vinham essas coisas que eclodiam num emaranhado de palavras que retratavam o seu povo favelado. Como dizia um personagem de Ariano Suassuna no Alto da Compadecida, ¨não sei porque sei, só sei que sei¨.

 

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Parou em frente ao muro que tinha umas pichações sem sentido, mas ainda mantinham  o nome da escola em letras azuis, os olhos marejaram, impossível não lembrar do menino Canela, que sempre carregou dentro de si, em cada livro que lançava, cada história que contava, sempre, sempre emergia o Canela, nunca deixou que isso se apagasse.

Aos trinta anos, agora um escritor famoso, estava ali, na escola onde estudou quando criança para ser homenageado e dar uma palestra. Estava acostumado com isso, mas aquela seria diferente, as lembranças, as influências, tudo lhe embargava a voz.

Foi recebido pela diretora, dona Miranda, que lhe mostrou como estavam todas as dependências, ela não sabia, mas a cada ambiente que ela o levava, em cada canto existia uma gota de saudade. Um bando de crianças iam atrás como tietassem um pop star. Após a visita subiu num palco improvisado com toda a escola sentada pronta para  ouvir o que tinha a dizer. Sentiu o peso do que ia falar, sabia que suas palavras podiam mudar vidas.

Hoje já não mora mais na favela, vive num bairro nobre, possui bens, é reconhecido por sua obra e talento, mas nunca nega suas origens, e isso se faz presente no que escreve.

Falou para todos aqueles olhinhos com um cuidado cirúrgico, riu e chorou muitas vezes, mostrou a importância da escola na sua formação, e dos professores na sua vida. Após quarenta e cinco minutos, e um turbilhão de emoções, a diretora abriu para perguntas das crianças.

Um menino foi o primeiro.

_Você gosta de vender livros?

_É claro que fico feliz quando pessoas compram meus livros, afinal, vivo disso, risos, mas tenho uma preocupação maior, que é a de que as pessoas entendam o que estou tentando dizer, se minha mensagem foi entendida de fato, porque acredito que isso é o que vai tocar  e influenciar quem os consome, e eu não nego que tenho essa intenção. Quero com minhas histórias poder contribuir para que as pessoas cresçam e mudem para melhor.

Um outro menino pergunta?

_Como faz para vender livros?

_Existem várias formas de vender livros, hoje tenho uma editora que cuida disso, quando criança aprendi com um amigo de infância, que hoje é um fantástico professor, e que foi quem mudou a minha vida, que como dizem por aí, o buraco é mais embaixo, risos, que o que importa é a missão, é o compromisso de tocar no coração das pessoas, fomentar nelas o desejo de mudar,   não sou um vendedor de livros… procuro vender sonhos e esperança.

Uma menina de seis anos pergunta?

_Quando era criança você tinha apelido.

Gargalhada geral da plateia.

Respondeu com um sorriso largo no rosto.

_Sim… Cafu.

 

Link da foto: autoral

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Tito Dassil

Professor de Língua portuguesa e espanhol, pós graduado em Psicopedagogia e Literatura Brasileira, poeta e romancista. Autor do ebook A Sétima Carabina (contos e crônicas) pela Amazon.

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