OS (NÓS) MISERÁVEIS

Relendo Os Miseráveis de Victor Hugo, e como toda releitura é uma segunda entrada no rio, e nessa segunda entrada não sou mais o mesmo, e nem o rio, me dou conta do quanto o mundo não mudou, do quanto o ser humano vem deixando de ser humano e vem tornando-se desumano. Em tempos de Hamas e Israel, de crises internas em países africanos, que papel a literatura pode desempenhar na construção de um ser humano melhor? O quanto precisamos nos descontruir para nos encaixarmos nesse mundo, ou nesses mundos?

Os Miseráveis, a obra monumental de Victor Hugo, continua a ressoar com uma força e uma relevância que transcende o tempo. Publicado em 1862, o romance épico retrata vividamente a miséria humana, a injustiça social e a luta pela redenção em uma Paris do século XIX. No entanto, seu retrato da miséria humana não é apenas um reflexo do passado; ele ecoa fortemente nos dias atuais, onde a desigualdade persiste e a pobreza ainda assola muitas partes do mundo.

É interessante quando buscamos uma relação entre muitos pensamentos anteriores e posteriores à Os Miseráveis, e fazemos uma colagem na tentativa de compreensão do comportamento humano nos tratos com o planeta e as espécies que aqui vivem, em especial a sua própria, e percebemos que criamos redes de poder, sistemas econômicos, camadas sociais, que ao invés de nos humanizar, cria e reforça abismos. Jean Valjean por exemplo,  é preso e condenado por dezenove anos às galés por roubar pão para alimentar os filhos de sua irmã durante um período de depressão econômica. Sem querer romantizar a maldade humana, mas isso nos leva ao estudo de Michel Foucault sobre uma sociedade punitiva, que tem por necessidade a punição do delinquente e que o trata como um inimigo da sociedade, e não como resultado da mesma, mesmo tendo sido feito décadas depois. Não teria a história de Jean alguma relação com o pensamento de Foucault? E que de fato retrata como a sociedade é hoje.

Assim como os personagens de Os Miseráveis, muitas pessoas nos dias atuais enfrentam uma luta diária pela sobrevivência, presas em um ciclo implacável de pobreza e desespero. A obra de Victor Hugo nos lembra que a miséria não é apenas uma questão econômica, mas também uma questão moral e humanitária. Ela nos desafia a confrontar as estruturas sociais e políticas que perpetuam a desigualdade e a marginalização.

Muitas obras e autores irão se comprometer em desnudar o mundo, descascá-los até suas camadas mais profundas, em alguns casos até que a carne sangre, que os nervos aflorem e exponham os ossos, mas na nossa pressa de sobreviver não percebemos, ou estamos anestesiados por nossas dores, e o olhar fica cego, nesse ponto, a literatura, o hábito constante de ler, pode impedirmos de naufragarmos em nós mesmos.

Mesmo ambientada numa França do século XIX, o mundo atual cabe infelizmente no Os Miseráveis de Victor Hugo. O sonho é que através da literatura, que é ao que nos propomos falar aqui em nossa coluna, impacte mortalmente a humanidade, porque nela está o tesouro, estão os segredos, as fantásticas revelações, do que somos, de onde viemos e para onde iremos. Muitos aspectos envolvem a realização deste sonho, mas sem dúvida que o primeiro é o desanuviamento, é a trave no olho, é a capacidade de perguntar e se perguntar, de interpretar, de ler e de ouvir.

Por fim, a literatura tem o poder de inspirar ação. As histórias de superação, coragem e determinação presentes nas obras literárias muitas vezes servem como fonte de motivação e inspiração para os leitores, encorajando-os a perseguir seus sonhos, enfrentar desafios e fazer a diferença no mundo ao seu redor. Ao mostrar que mesmo as mais adversas circunstâncias podem ser superadas, a literatura capacita os indivíduos a acreditarem em seu próprio potencial e a buscar mudanças positivas em suas vidas e comunidades. Esse é ponto que buscamos de fato alcançar, um mundo com seres capazes de fazer suas interpretações a partir de um mundo imaginado ou real, mais do que construir precisamos descontruir, compreender a direção do vento, entender porque o rio corre na direção do mar, porque as abelhas pousam de flor em flor. Quem sabe, muitos dos nossos questionamentos quanto aos nossos comportamentos não podem ser compreendidos a partir de um ressurgir, permeados sim pela vontade política, mas antes, pelo nosso interesse em lamber as feridas e respeitar as cicatrizes.

Link da foto: autoral

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Um Comentário

  1. Que linda reflexão,que relação extraordinária entre o Miseráveis e os dia atuais em que vivemos,em um mundo frio e sem perspectiva de um amanhã melhor e pior sem se importar com quem está do nosso lado que sofre a mesma dor que a nossa e talvez até pior do que a nossa.
    Parabéns!!!

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