Carina Lessa

Geração Mimeógrafo: entre a cópia barata e o aroma de papel estêncil

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/saco-de-papel-saco-de-caf%c3%a9-saco-6905690/)

 

Há quem considere o mimeógrafo uma máquina obsoleta, principalmente por não pertencer à área da educação, aqui, não se despreza nada. Verificamos que a aceitação do mercado ainda é muito grande, várias empresas, inclusive, lançam versões mais recentes na medida em que a tecnologia é mais econômica, fácil de usar e pode ser acionada sem eletricidade. Não é uma beleza?

Na década de 70, o verso livre já estava caduco e quase ninguém sabia. Pego o adjetivo entendendo-o como “caído”, “sem força” (démodé deveria ser a melhor escolha), o velho fica por conta do tempo, sempre flexível. A conversa vem a calhar agora, lá no passado, a Geração organizada no livro 26 poetas hoje, por Heloisa Buarque de Hollanda, levantava fumaça e tirava fogo de pedra. Digo isso pensando que os tempos políticos aguçaram o instinto e o grito de independência na produção daqueles artistas como últimos bons suspiros dos modernismos que alavancaram os rios do Brasil.

Não há aqui um tom nostálgico e/ou condenatório, pego de antemão recente entrevista do poeta e ficcionista Antonio Carlos Secchin, na qual declara:

“Tendo a trabalhar de preferência (não com exclusividade) com as chamadas “formas fixas”, mas penso que não cabe aos poetas repeti-las, e sim inventar possibilidades  frente ao que parece mumificado. Por que não um diálogo crítico, não de submissão, com o legado da tradição? Isso também é valido para as formas não fixas, o verso livre já um senhor mais do que centenário. Num ou noutro caso haverá boa ou má poesia” (2021)[1].

A fala atemporal se coaduna com o escritor selecionado para compor a antologia de Heloisa. Dentre os poemas de versos livres, um “Soneto das luzes”[2]:

Uma palavra, outra mais, e eis um verso,

Doze sílabas a dizer coisa nenhuma.

Esforço, limo, devaneio e não impeço

Que este quarteto seja inútil como a espuma.

 

Agora é hora de ter mais seriedade,

Senão a musa me dará o não eterno.

Convoco a rimam que me ri da eternidade,

Calço-lhe os pés, lhe dou gravata e um novo terno.

 

Falar de amor, oh pastora, é o que eu queria,

Mas os fados já perseguem teu poeta,

Deixando apenas a promessa da poesia,

 

Matéria bruta que não cabe no terceto.

Se o deus frecheiro me lançasse a sua seta,

Eu tinha a chave pra trancar este soneto.

 

Contemplemos ainda a irreverência de Cacaso:

 

Epopeia

 

O poeta mostra o pinto para a namorada

e proclama: eis o reino animal”!

 

Pupilas fascinadas fazem jejum.

 

Os poetas ali guardados pelo olhar da pesquisadora, em grande quantidade, abraçam a estética em pauta nos modernismos brasileiros desde a Semana de 22. É inegável o diálogo que mantém com a tradição. O tom maior, se analisarmos a chamada Geração Mimeógrafo, vai mesmo pelos caminhos horizontais da história, sempre necessários para que se desenvolva o olhar vertical que abarque as individualidades técnicas, formais e estilísticas.

A impressão em papel estêncil é oportuna pela facilidade de propagação da escrita em momento de desrespeito aos direitos civis, o discurso da contracultura se coaduna com o movimento pós-beats nos Estados Unidos, paira entre a acepção do cansaço e a do ritmo musical e semântico.

Ainda em 1972, circulava pelas bandas do Rio de Janeiro e de Natal o chamado Poema-processo, os poetas envolvidos trabalhavam com ideias muito similares ao Concretismo. Empregavam linguagem não verbal (símbolos e figuras geométricas) de modo que a imagem pudesse se sobrepor à escrita. Moacy Cirne produzira um material com folhas brilhosas, em vermelho, preto e amarelo, distribuídas em envelopes que denominava como um poema. O “leitor” era convidado a picotar e a embaralhar os papéis possibilitando a relação criativa com o poema. Sim, a materialidade deste era desprovida de escrita.

O interessante desse grupo, aparentemente de proposta conceitual, é o fato de rejeitarem escritores como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e João Cabral de Mello Neto, considerando-os formalistas e academicistas (lembremos que João Cabral nunca publicara um soneto).

Não se enganem, não tenho nada a dizer e isto é uma crônica. Lembro que tudo e nada têm a ver com os dias contemporâneos. Penso mesmo na cultura em seu sentido original e etimológico: do latim colere significa cuidar, cultivar e crescer. Os modernismos e todos os segmentos desdobrados em décadas trouxeram a ideia de ruptura, sempre comprometida com uma visão linear e historiográfica de literatura. Estou sentada…

Descanso sem entender nada, penso nas origens das vanguardas em meados do século XIX, principalmente a partir das veias transcendentais de Baudelaire, Poe, Mallarmé e Rimbaud, e procuro a modernidade. Na sala das redes sociais, os algoritmos são bem rápidos, multiplicam-se “mimeograficamente”, poucas vezes consigo sentir o aroma do papel estêncil. A boa notícia é que há muitas editoras publicando, as cópias saem bem mais baratas.

 

[1] Disponível em: https://orelhadepapel.blogspot.com/2021/06/entrevista-de-antonio-carlos-secchin

[2] Título que aparecerá somente em Elementos (1983).

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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