SOB A CHUVA
SOB A CHUVA
Na Sexta Feira Santa, estava esperando a chuva intermitente diminuir a fim de levar o lixo para latão do prédio; dia da semana do recolhimento. Não é necessário descrever que o mau cheiro terrível, devido aos restos das carnes marinhas da maioria dos apartamentos.
Quando eu desci, vi um homem muito sujo, com a camisa dobrada em seu pescoço, segurando um saco preto recolhendo alguns objetos plásticos. Parei por um momento e fiquei observando, antes de me aproximar e colocar o meu lixo.Será que ele não tem olfato? Como consegue suportar?
A cena me reportou ao poema ” O Bicho” de Manuel Bandeira e simultâneo ao pensamento, aumentando meu espanto, o rapaz comeu um resto de algo que não consegui identificar. Sei perfeitamente que isso acontece todos os dias, em vários cantos da cidade. Uma coisa é saber, outra é presenciar sem nada fazer.
Caminhei até o latão, o mendigo não olhou para mim porque seu olhar permanecia fixado para as minhas sacolas. Disse em tom baixo:
– Tenho latinhas, vou buscar lá em cima. – falei sem olhar pra ele.
Voltei, tranquei o portão, subi correndo as escadas, entrei na cozinha e antes de pegar as latinhas preparei um sanduíche e uma caixa de suco gelado. Coloquei o pacote em uma bolsa plástica, na outra mão levei um grande saco com as latinhas vazias.
Senti um misto de constrangimento e covardia ao entregar, apenas um pão e suco. Quando olhei seu rosto, senti uma dor ainda maior! Cego de um olho, na chuva, revirando lixeiras podres!
Não sei afirmar se ele é um bom homem, ou me disse lindas palavras por gratidão. A verdade é que não me senti melhor com o agradecimento. Acenei com a cabeça e pedi, inutilmente, para ele sair da chuva.
Fechei o portão, comecei a subir as escadas, sentei em um dos degraus e chorei.
Ivone Rosa
@profaivonerosa
março/2024
Ref. imagem: https://pixabay.com/pt/photos/chuva-po%C3%A7a-agua-espelhamento-2538429/
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