Carina Lessa

Enquanto a casa não se organiza: o mistério do entrudo

 

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Choveu o mau cheiro por todos os lados. O hábito, ah… o hábito… vai mesmo ao sabor de todas as casas. Da janela, avista-se uma senhora que se diz de grande estirpe: admira as flores e as belezas dos quintais, apesar de conter a língua das insanidades. É que o palanque e o carro elétrico dos outros doem-lhe nas veias, é que os devassos lhe são escassos (o eco demanda o caso), é que amores lhe são partidos, é que os jantares lhe são devaneios. E a janela? Ah… a janela é mesmo ainda lugar de vizinhas fofoqueiras que se projetam sem futuro nas partes, sem alavancas nas ventas e sem cheiros de carmim. Vão ao sabor das vaidades afetadas que projetam nas belas mulheres os recalques mais sutis das vilanias. Perdoem-nos, senhores, a poética desabrigada e trambiqueira, vai ao tempero das gentes.

Um homem reza e pede perdão pelo futuro inglório. As cachaças estão em falta, os namorados, pequeninos, as almofadas, lambuzadas, os cabelos fartos, na estrada. Vai rimando ao pé do vento, vai cambaleando pelas calçadas, vai cosendo com o vento. Pede perdão mesmo porque o dinheiro é coisa que vem e passa, porque o dinheiro é coisa que bate e desgraça, porque o dinheiro lhe bandeou por onde grassa.

Um ser desprovido de nome escolhe-se cereja na avenida. O corrimão caminha dramático, tudo indica ser um caso antigo, que chegaria ao século XIX se as idades a convidasse por mais de um século. A questão mora em paquete: o barco a vapor tão pequeno e veloz tem frequência anual, quiçá trimestral, e não se aguenta com tanto descaso. O Rio de Janeiro anda mesmo pelas tabelas e as partes baixas andam em falta, foi o que nos disseram.

A vida, dizem, segue à moda das pessoas escravizadas, o Brasil nunca perde por esperar. Daqui, pode-se ver a banda passar, contar nos dedos os casos de amor, cavar os doces sem cor. Intriga-nos o animatógrafo escondido no quarto da Maria, descobrimos há uns três dias o objeto. Parece que a moça tem mesmo retinas perdizes, a tesoura brilha ainda mais quando observada no escuro, dissemos isso porque os dias vão ao conforto do sofá. Não esqueçamos de anotar os Suplementos de grande circulação: as reflexões são velhas, tardam mesmo em chegar. Talvez seja o hábito datado das antigas línguas: não perdem o hálito fresco dos costumes e das mentalidades provincianas. Não os recriminemos, a criatividade sempre esteve em falta e o povo sofredor que se habilite.

 

(Imagem disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/rua-gato-rural-arquitetura-cidade-4205751/)

 

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Carina Lessa

É ficcionista, poeta, ensaísta e crítica literária. É graduada em Letras, mestre e doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Atua como professora de graduação e pós-graduação nos cursos de Letras e Pedagogia da Unesa. É membro da Associação de Linguística Aplicada do Brasil e da ABRALIC.

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